Às vésperas do encerramento da CPI da Pandemia no Senado, o presidente da comissão não tem dúvidas de que a conclusão do trabalho prevista para as próximas semanas dará uma resposta à altura ao desejo de justiça da sociedade. “Todo mundo conhece alguém que morreu de Covid-19 e essa tragédia não pode ficar impune”, afirma Omar Aziz (PSD-AM). Cauteloso, o senador evita imputar crimes comuns a Jair Bolsonaro e relacioná-lo à corrupção, mas diz que os indícios já apontam para um crime de responsabilidade — que pode lhe render um processo de impeachment na Câmara. Para Aziz, a investigação revelou ao menos três fatos graves com relação à conduta do presidente: a propaganda de medicamentos sem eficácia comprovada, a aposta na tese da imunidade de rebanho — que levou a mortes evitáveis — e a omissão na compra de vacinas. Tudo isso, afirma, cometido por um governo que abraçou o negacionismo, aspecto que considera mais importante que eventuais desvios de recursos.
O que esperar da reta final da CPI? Não estamos atrás de vingança, queremos justiça, achando os responsáveis por todas as mortes que poderiam ter sido evitadas. A política do governo nunca esteve voltada para a imunização, mas sim para alguns programas tirados em gabinete paralelo, de “ouvir dizer”, e isso levou ao caos.
Qual o fato mais grave e que está mais bem comprovado? São três. O primeiro é a propagação de medicamentos que não eram e nunca serão eficazes contra a Covid. Outro, muito difundido no início, foi o de que um porcentual de contaminados iria imunizar todo mundo. Não existe imunidade de rebanho, e isso foi propagado pelo governo, por pessoas ligadas ao presidente e parlamentares. Isso é crime sanitário, que vai estar no relatório, e as pessoas responsáveis por essa propagação serão responsabilizadas. Por último, a questão mais grave é que o Brasil nunca apostou na vacina.
Como se prova isso? A gente descobriu isso com o depoimento do ex-secretário da Secom Fabio Wajngarten, que trouxe um documento mostrando que a Pfizer, em agosto do ano passado, já mandava correspondências para o governo, que não respondia. Aí, quando enxerga que a imunização seria realmente necessária, o governo facilita a entrada de pessoas no Ministério da Saúde para comprar vacinas por meio de intermediários, para ter lucro, tirar dividendos disso. Negligenciam as fabricantes sérias, mas dão prioridade a essas outras, como o caso da Covaxin, o mais barulhento até agora. Os indícios de crimes por agentes públicos são muitos. A CPI vai colocar isso no relatório.
No caso da Davati, que se apresentou como intermediária da AstraZeneca, ficou a impressão do dito pelo não dito em relação à propina, pois o negócio jamais se concretizou, não? Não é questão de propina. O fato maior é como eles entram no Ministério da Saúde, levados por um reverendo ou por outra pessoa, e conseguem sentar com o Elcio Franco, que era o secretário-executivo que cuidava da compra de vacinas. Compare com a Pfizer oferecendo vacina ao governo e a Davati entrando no ministério. Eles vão a um jantar e, no dia seguinte, já estão lá dentro. E a Pfizer manda vários documentos, cartas, se oferece, e ninguém dá resposta. E, ainda pior, você buscando a vacina na marra e o presidente fazendo uma anticampanha, dizendo: “Olha, tu vai virar jacaré”, “essa vachina”. O presidente, que era para ser o porta-voz da vacinação, é o porta-voz antivacina, além de ser porta-voz de remédios não comprovados cientificamente.
“Aqueles que foram omissos em relação à doença terão de ser responsabilizados pelos seus atos. Se os indícios forem contra o presidente, não tenha dúvida de que ele estará no relatório final”
Para alguns membros do Ministério Público, a propaganda antivacina pode ser encaixada como crime de responsabilidade. A CPI vai pedir a abertura de impeachment contra o presidente? O que nós temos são vários fatos que levam a isso. Não posso me antecipar, mas tenha certeza de que todos aqueles que foram omissos em relação à doença, numa conjuntura em que o negacionismo foi muito grande, terão de ser responsabilizados pelos seus atos. Se os indícios forem contra o presidente, não tenha dúvida de que ele estará no relatório final.
O presidente alega que as decisões que o governo tomou foram para conciliar a saúde com a economia. A economia não está na situação que está por causa somente da pandemia, senão o mundo todo estaria quebrado. Nenhum país com uma economia do tamanho da brasileira tomou as atitudes que o presidente tomou. O problema do presidente não é ele errar, é não admitir e não fazer a autocrítica, que ele podia ter feito lá atrás e ter mudado o rumo.
Outra tese do presidente é a de que a União enviou muito dinheiro aos estados e isso foi mal gerido. Não é mentira, aprovamos muitos recursos no Congresso. Mas a gestão não era só o gasto. Nenhum país estava preparado para o número de pessoas que iria para as UTIs. No Amazonas e em outros estados houve, sim, falta de oxigênio, porque houve omissão, o governo federal demorou a tomar providência. O estado também poderia ter agido com mais eficiência. Mas a questão não era só dinheiro, era de política sanitária. Então, Bolsonaro começou a jogar a culpa nos governadores e prefeitos, sempre com uma narrativa negacionista. Esse foi o grande erro.
O STF agiu bem na pandemia? O Supremo, toda vez que provocado, agiu bem, sim. E não impediu o presidente de atuar, apenas fixou que cada cidade e estado tem uma peculiaridade.
Os habeas corpus que o Supremo concedeu para que depoentes se calassem atrapalharam a CPI? Lógico que a gente não gosta, mas é constitucional. Ninguém pode tudo, nem nós do Legislativo, nem o Executivo e nem o Supremo. Mas ele é a última instância que o cidadão procura para que seus direitos sejam respeitados. Você não vai me ver na presidência criticando decisões. Quando a gente discorda, a gente recorre. Imagine se, em toda decisão desfavorável, nós falássemos: “Vamos fazer o impeachment do ministro”. Isso não existe.
O senhor diz que a CPI quer buscar justiça, mas depende do MP fazer as responsabilizações criminais. O senhor vê risco de o relatório virar letra morta? O procurador-geral da República, Augusto Aras, será muito cobrado por isso. Ninguém vai esquecer tantas mortes.
Qual sua avaliação sobre a popularidade dos trabalhos da comissão? Antes, as pessoas eram canceladas pelo bolsonarismo. A CPI bateu de frente. Eu disse: “Pode falar, mas nós vamos investigar”. O resultado é que o público ficou do nosso lado. Segundo uma pesquisa recente, 67% da população acompanha a CPI e 57% aprovam o trabalho.
A CPI ganhou muito destaque porque ela teve um pouco também de espetáculo, bate-bocas. Isso não é ruim? Isso já tinha antes. A diferença é que agora nós estamos tratando de vidas. O que as pessoas têm de entender é que a nossa relação no Senado é muito respeitosa. Temos bate-bocas, mas nos respeitamos. Não é tentando destruir um adversário que eu vou construir algo de bom para o Brasil. E o presidente acredita na destruição dos outros. A II Guerra foi contra o nazifascismo. Ganharam a guerra, mas não extinguiram o nazifascismo. Aqui no Brasil há quem defenda o nazifascismo. Eles acham que o cara que empunha a bandeira é mais brasileiro que os outros.
Os senadores da comissão tiraram o pé do acelerador ao desistir da convocação do general Braga Netto? Foi um gesto para não esticar além da conta a corda? Não tivemos maioria. Eu sou a favor de convocá-lo, não porque é ministro da Defesa, mas porque foi coordenador de tudo isso que aconteceu. Temos de perguntar: por que não teve barreira sanitária? Por que o senhor não respondeu à Pfizer?
Até agora, qual foi o depoimento mais importante na CPI? O do almirante Barra Torres, da Anvisa, por causa da informação sobre a bula da cloroquina, que o ex-ministro Henrique Mandetta já havia falado que o governo queria trocar para permitir o seu uso contra a Covid-19. Isso é gravíssimo.
E qual foi o mais frustrante? O ex-ministro Eduardo Pazuello omitiu e faltou com a verdade várias vezes. Um general poderia ter sido mais firme, ele tem uma história no Exército.
Qual foi o dia mais tenso? Quando tive de prender o Roberto Dias (ex-diretor de Logística do ministério). Eu não estou aqui para ser julgador, mas ele mentiu muito. Não tem adjetivo para esse cara. E não tem adjetivo também para o empresário Carlos Wizard. Aquela risada dele no vídeo em que diz: “Sabe quem morreu? Foi quem ficou em casa”. É esse tipo de gente que estava no ministério, que aconselhava esse tipo de pensamento.
“O depoimento mais frustrante foi o do ex-ministro Eduardo Pazuello. Ele omitiu e faltou com a verdade várias vezes. Um general poderia ter sido mais firme, ele tem uma história no Exército”
Qual é a situação do deputado Ricardo Barros, líder do governo? Ele era testemunha, passou a ser investigado. A ministra Cármen Lúcia manteve a quebra de sigilo dele.
Que impacto a CPI vai ter na eleição de 2022? Não dá para saber. A política é muito dinâmica, as pessoas mudam. Pegue como exemplo uma bomba que caiu no colo do Lula, a CPI dos Correios. A pessoa mais forte do governo dele, o José Dirceu, teve de ser exonerada. O Lula começou a trabalhar, criou Bolsa Família, Luz para Todos, Minha Casa, Minha Vida, programas que não só o reelegeram como fizeram a sua sucessora. Mas isso teve um custo, começamos a ter déficit, o país parou de crescer, e a Dilma foi cassada com o povo na rua pedindo.
O que se pode esperar a respeito dos desdobramentos das manifestações pró-governo de 7 de setembro? Creio que isso vai despertar um olhar mais minucioso por parte do Supremo Tribunal Federal e do Congresso no sentido de que a democracia no Brasil corre risco grave, sim. Tinha muita gente nas ruas, mas já vi mais gente em manifestações que não tinham apoio das polícias, do Exército e da máquina pública. Com os problemas que o Brasil vive, incluindo desemprego, inflação alta, dólar alto, falta de perspectiva de crescimento, política ambiental desastrosa, política social ineficaz de distribuição de renda, energia todo dia aumentando, gasolina e gás de cozinha aumentando, essas pessoas vão para a rua em defesa deste governo… Estamos com quase 600 000 mortos por causa da pandemia e parece que nada está acontecendo.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2021, edição nº 2755