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A China encobriu a real ameaça da Covid-19, diz Ai Weiwei

Criador de um incômodo documentário sobre o surto da Covid-19 em Wuhan, o artista e ativista mostra o controle submetido pelo país à população na crise

Apresentado por Atualizado em 4 mar 2021, 20h32 - Publicado em 28 ago 2020, 06h00

O artista plástico Ai Weiwei, de 63 anos, exibe gloriosas realizações dentro e fora da China. Em seu país, concebeu obras marcantes, como o design do estádio da Olimpíada de 2008, o Ninho de Pássaro. Weiwei é um dos profissionais mais valorizados do mundo em seu campo de atuação, além de ser popular: sua bela retrospectiva no Brasil atraiu 1,1 milhão de pessoas entre 2018 e 2019. Mas o talento não sensibilizou o governo chinês. Crítico do regime de Pequim, ele se tornou seu dissidente mais famoso. Por isso, amargou anos em prisão domiciliar e teve seu estúdio destruído. Do exílio na Europa (vive em Portugal), Weiwei dirigiu um incômodo documentário sobre a Wuhan dos primeiros dias da Covid-19. Recém-lançado na plataforma Vimeo, Coronation mostra como a China submeteu dos médicos à população a um controle draconiano durante a crise. Na entrevista a seguir, concedida por meio de um aplicativo de vídeo, Weiwei dá sua visão sobre a pandemia e os interesses que movem a ditadura do gigante asiático.

Como foi possível filmar um documentário sobre a Covid-19 em Wuhan, com acesso a lugares mantidos longe dos olhos do mundo pelo governo? Estou acostumado a fazer filmes que expõem a realidade do meu país de um modo que o governo não gosta de expor. Em 2003, fiz um documentário sobre o surto da Sars e, por isso, já sabia bem que tipo de drama as pessoas comuns viveriam e como o Estado controlaria tudo com truculência. Logo que a Covid-19 explodiu em Wuhan, pedi a amigos, ativistas e ex-funcionários do meu estúdio que filmassem o que fosse possível. Aos poucos, conseguimos acesso aos hospitais e UTIs. Mais gente se ofereceu para ajudar, novos personagens surgiram, médicos e enfermeiros indignados com a situação deram colaborações valiosas. São situações e personagens que refletem o controle estatal na forma como ele se manifesta tipicamente no comunismo chinês, com os burocratas agindo com frieza diante da dor dos outros.

Há duas visões sobre o modo como a China lida com o vírus — para alguns, o país agiu de forma rápida e com um lockdown eficiente. Mas há quem acredite que, se o governo chinês tivesse atentado para a doença e assumido sua gravidade antes, o mundo não teria sido tão atingido. Qual lado está certo? É um fato que a China mentiu no início da epidemia e encobriu a real dimensão do problema por um tempo que seria precioso, tornando muito mais difícil controlar o vírus. Também faz sentido desconfiar dos números de mortos e infectados, que foram absurdamente baixos se comparados ao que ocorreu na Europa, nos Estados Unidos ou no Brasil. Por outro lado, é inegável que a China é sempre eficiente ao impor protocolos para controlar situações como uma epidemia. A China é um Estado policial. As pessoas são condicionadas a ouvir as ordens, abaixar a cabeça e obedecer. Elas têm de obedecer.

Há também uma teoria de que o vírus pode ter sido criado num laboratório chinês e escapado ao controle por alguma razão. Pode ser verdade? O argumento não soa tão conspiratório para mim. Não me convence a explicação de que o coronavírus teria surgido da natureza ou em um mercado de animais, como se diz. Muitas cidades e países têm forte conexão com a natureza, e em toda a Ásia há mercados como aquele. Por que justamente em Wuhan? Você sabe, a cidade tem o mais afamado centro de pesquisas epidemiológicas dentro da China, mas o país nunca o abriu para o mundo, nem esclareceu quais vírus e doenças estavam sendo estudados ali. A falta de transparência da China sobre o que ocorria naquele laboratório torna compreensível que as pessoas desconfiem. Não me parece que o vírus tenha vindo da mãe natureza.

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“A falta de transparência da China sobre o que ocorria naquele laboratório torna compreensível que as pessoas desconfiem. Não me parece que o vírus tenha vindo da mãe natureza”

A China sairá fortalecida dessa crise por supostamente ter lidado melhor com a pandemia do que as democracias ocidentais? A ditadura chinesa consegue ser, sim, mais eficaz que as democracias em crises assim. Mas a eficiência é obtida em detrimento da liberdade dos indivíduos, que não têm saída a não ser seguir as regras. Isso afetou da rotina de médicos e enfermeiros aos doentes, que só podiam entrar ou sair do hospital quando fosse conveniente para as autoridades. Nas democracias, é mais penoso tomar decisões.

Por quê? Nas democracias, é preciso combater a pandemia sem ferir a liberdade. Não é possível impedir debates e questionamentos sobre o que o governo faz. É muito mais simples em países como a China, onde o governo decide e nomeia pessoas sem ter de prestar contas, apela à censura e põe na cadeia quem se recusa a colaborar.

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A certa altura do filme, um homem reclama de não conseguir recuperar as cinzas do pai, morto pela Covid-19. É realmente tão desafiador lidar com a burocracia na China? Não chega a ser uma situação inusual a que aquele homem viveu, e o coronavírus expôs de forma aguda como as pessoas estão sujeitas aos caprichos estatais. Se o cidadão perdia um parente numa UTI em Wuhan, ele só podia retirar as cinzas se aceitasse que um oficial fosse junto. Eles desejavam se certificar de que a pessoa nessa situação — geralmente revoltada com a perda — assinaria um termo garantindo que não processaria o Estado, nem faria reclamações públicas. Se o homem ficasse quieto, conseguiria as cinzas do parente e ainda uma compensação em dinheiro do governo.

Mas e se ele se negasse, como faz o personagem do filme? Esse homem, chamado Donghai, não queria realmente que ninguém do governo o acompanhasse na retirada das cinzas, pois estava enfurecido. Afinal, a falta de informação sobre a doença custara a vida de seu pai. Tudo que ele queria era um momento a sós com os restos paternos. É o mais razoável dos desejos que um ser humano pode ter nessa hora. Mas os chineses só tiveram direito a viver seu luto digno ao aceitarem as condições do governo — e 99% deles devem ter aceitado, claro.

Coronation mostra como o governo passou a monitorar os chineses após a Covid-19. Como isso se dá? Com a crise, o governo chinês ganhou uma boa desculpa para ampliar a vigilância sobre todos. A ferramenta para esse fim é um aplicativo de saúde que as pessoas são obrigadas a carregar em seu celular e passar seus códigos de identificação aonde forem. Por meio disso, o governo tem um registro de todas as atividades, lugares que a pessoa frequenta e produtos que compra. O vírus é uma arma poderosa com que o Estado chinês controla não só os pensamentos, como já fazia, mas também o comportamento humano.

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O mundo assiste hoje a uma nova Guerra Fria, em que os Estados Unidos disputam não mais com a extinta União Soviética, mas com a China. A pandemia aumentará o cacife do governo chinês nesse embate? Eu não vejo a situação de hoje como uma mera repetição da Guerra Fria. Na disputa entre americanos e soviéticos, a ideologia ocupava lugar central. É um erro acreditar que os chineses são movidos por qualquer coisa próxima de uma ideologia. A China reza pela cartilha de um capitalismo de Estado autoritário e centralizado. O problema da China é que ela não tem religião, nem se guia por causas ou ideologias. Receio que ela vai dar muito mais trabalho aos americanos do que os soviéticos deram na Guerra Fria.

Que tipo de desafio ela impõe? Foram os Estados Unidos que fizeram a China ser o que é hoje, e eles estão tão imbricados com o inimigo que destruir sua economia seria jogar contra a própria economia americana. Quarenta anos atrás, o país era um regime fechado como a Coreia do Norte de agora. Com a abertura econômica, a partir dos anos 70, os chineses descobriram o prazer de ganhar dinheiro. Isso vale para os milionários e os burocratas corruptos. Os americanos viram uma grande oportunidade ao transformar a China em parceira capaz de produzir produtos que eles não conseguiriam fazer sem uma mão de obra tão barata. Essa relação proporcionou um período dourado de prosperidade para os Estados Unidos e a Europa. Nesse ínterim, a China voltou toda sua educação, seus valores morais e a roda da corrupção governamental para um único objetivo: enriquecer. Enquanto a população do Ocidente consumir qualquer bem manufaturado, a China não terá um dia negativo.

Na sua megaexposição em São Paulo, aberta em meio às eleições de 2018, o senhor apresentou trabalhos monumentais que denunciavam a destruição das florestas brasileiras. Como analisa a explosão do desmatamento desde então? Naquele momento, já era preciso gritar contra a destruição. Mas agora a situação está pior. O presidente Jair Bolsonaro tem a mesma visão do americano Donald Trump a respeito do meio ambiente. Ela se baseia numa falsa dicotomia entre preservar e buscar o desenvolvimento. Uma coisa não exclui a outra, pelo contrário. Desmatar florestas só trará prejuízo ao Brasil a longo prazo. A natureza é o bem mais precioso que o país possui, e preservá-la fará bem ao mundo, aos seus habitantes e à economia.

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“O problema do meu país é que ele não tem religião, nem se guia por causas ou ideologias. Receio que vai dar mais trabalho aos americanos do que os soviéticos deram na Guerra Fria”

Sua arte sempre foi inseparável da política. Como se tornou um artista engajado? Está no meu sangue. Eu só poderia seguir esse caminho. Meu pai, Ai Qing, foi um poeta conhecido, mas caiu em desgraça. No fim dos anos 50, ele foi enviado a um campo de trabalhos forçados. Eu tinha 1 ano quando isso aconteceu.

O senhor é um dos artistas mais valorizados do mundo. É um homem rico? Eu devia ter me tornado rico, mas não sou. Não me importo com quanto dinheiro tenho, ou em medir meu trabalho pela conta bancária. Basicamente, eu reinvisto em minhas obras a maior parte do que ganho. No momento, estou produzindo três filmes com dinheiro meu. Mas se não tivesse ninguém disposto a pagar 14 centavos por uma obra minha, tudo bem. Eu viraria escritor. Precisaria só de uma caneta e papel em branco.

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O senhor já viveu na Alemanha, Inglaterra, Itália — e atualmente mora em uma quinta em Portugal. A vida de um apátrida é uma bênção ou maldição? Em 2015, fiz um filme sobre os refugiados internacionais. Fui até pessoas que se espremiam à beira da praia aguardando a chance de ser recebidas por algum país. Mas elas não eram bem-vindas a quase nenhum lugar. Eu não tive esse problema, porém me identifico com todo refugiado. Uma vez que saí do meu país, já não posso voltar atrás.

Se tivesse liberdade na China, o senhor retornaria? Amanhã mesmo. Se eles garantissem que me deixariam em paz, que não dariam sumiço em mim, que não infernizariam a vida da minha mãe e que não me impediriam de ter um advogado, eu voltaria com prazer. Por que não? A China é o meu país.

Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702

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