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Em busca do diagnóstico perfeito

O DSM tem um grande calcanhar de aquiles: a possibilidade de provocar diagnósticos imprecisos. Projeto quer utilizar descobertas sobre genética e neurociência para determinar se um paciente está, de fato, mentalmente doente

Por Vivian Carrer Elias
12 Maio 2013, 16h54

No próximo fim de semana, dia 18, a Academia Americana de Psiquiatria vai publicar a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, sigla em inglês), documento considerado por muitos como a “bíblia da psiquiatria”. O novo manual trará mudanças importantes em relação à edição anterior, como alterações em doenças comuns, incluindo a depressão, e a inclusão de novos transtornos mentais. Apesar disso, é impossível dizer que a publicação do manual revisado resulte em uma mudança drástica na forma como a psiquiatria é aplicada atualmente. Isso porque o DSM-5 não conseguiu resolver o grande problema dos manuais anteriores: ao contrário de outras áreas de medicina, os diagnósticos psiquiátricos ainda não dispõem de marcadores que possam revelar a doença de modo preciso.

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Longe do consenso

O diagnóstico proposto pelo DSM tal como ele é hoje é feito com base no número e na duração dos sintomas que um paciente apresenta. Por exemplo, para ser classificada com depressão, uma pessoa precisa apresentar pelo menos cinco dos nove sinais depressivos descritos no manual, que devem durar por ao menos duas semanas. É um verdadeiro checklist, que passou a ser usado no DSM-III e persiste desde então.

É inegável que o DSM é, hoje, a melhor ferramenta que os psiquiatras têm para fazer um diagnóstico. Entretanto ainda está longe de ser a ideal. O desafio, então, é encontrar formas precisas de determinar, por exemplo, se uma criança realmente tem transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) ou se ela apenas está agindo normalmente de acordo com a sua personalidade. E a solução parece estar em fazer o diagnóstico a partir da genética e da neurociência.

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Com esse objetivo, o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH, sigla em inglês) criou, em 2009, o Projeto de Pesquisa em Domínio de Critérios, o RDoc. A ideia do projeto é investir em pesquisas que mostrem aos médicos e cientistas o que acontece em um cérebro com um distúrbio mental; ou então quais genes presentes no DNA são responsáveis por desencadear doenças do gênero.

Segundo o diretor do RDoc, Bruce Cuthbert, o RDoc não foi formulado para substituir o DSM, mas sim para alimentar as futuras versões do manual com novas descobertas científicas. Apesar de todo empenho e investimento em torno do projeto, ele ainda não permite que a neurociência e a genética sejam colocadas em prática. “Nós não sabemos ainda quando nossos dados poderão ser usados na prática clínica. Talvez leve dez ou vinte anos para que isso aconteça. Mas se nós não começarmos essas pesquisas agora, nunca chegaremos lá”, afirma Cuthbert em entrevista ao site de VEJA.

Bruce Cuthbert, diretor do RDoc
Bruce Cuthbert, diretor do RDoc (VEJA)
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Qual é e será a relação do RDoc com o DSM? Eu e meus colegas estamos mantendo contato com os pesquisadores do DSM desde que o nosso projeto começou, em 2009. Está muito claro para nós que o RDoc não é um concorrente do DSM, já que nós estamos tentando desenvolver uma literatura de pesquisas científicas que forneçam informações para futuras versões do DSM. O que todos os psiquiatras querem é que, no futuro, o diagnóstico desse manual seja baseado na genética e na neurociência, em um sistema que avalie os circuitos do cérebro.

Por que é importante que a genética e a neurociência façam parte do diagnóstico psiquiátrico? Cada vez mais, nós entendemos que os transtornos mentais afetam o circuito cerebral como um todo, diferentemente de doenças neurológicas, como a de Parkinson, por exemplo, caracterizada por um problema grande e específico no cérebro. Nós gostaríamos de fazer o diagnóstico na psiquiatria de forma mais precisa a partir dessas disfunções nos circuitos do cérebro. Porém, não podemos fazer isso até termos uma ideia melhor de como essas disfunções estão ligadas às doenças mentais.

Como o senhor avalia a maneira como o diagnóstico psiquiátrico é feito atualmente? Precisamos de um manual psiquiátrico agora para tratarmos os pacientes hoje, e o DSM cumpre esse função diagnosticando pelos sintomas. O DSM ainda é a melhor forma de diagnosticar transtornos psiquiátricos que conhecemos. Porém, precisamos fazer algo melhor para o futuro, mas ainda não sabemos como. É por isso que criamos o RDoc, para explicarmos o que acontece no organismo que leva a determinado transtorno e, a partir disso, desenvolver novas formas de diagnóstico.

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Quais são os problemas de diagnosticar uma doença psiquiátrica apenas pelos sintomas? Os transtornos mentais têm aspectos muito específicos que precisam ser tratados como tal. É como, por exemplo, o câncer. Não adianta dizer que um paciente está com a doença sem especificar o tipo do câncer e tratá-lo de maneira generalizada. Hoje, há alvos específicos para tratar cada câncer, e é isso o que precisamos na psiquiatria.

Como o senhor avalia os conhecimentos que temos hoje sobre a relação entre neurociência, genética e psiquiatria? Temos muito conhecimento, mas nós não sabemos o suficiente e ainda não estamos prontos para aplicá-los na prática clínica. Nós já identificamos certas disfunções cerebrais relacionadas à esquizofrenia, por exemplo, mas que não se aplicam em todos os pacientes com a doença, somente a um determinado grupo. E o mesmo vale para outros distúrbios mentais. Então, nós precisamos identificar quais são esses pequenos grupos que apresentam as mesmas disfunções e encontrar tratamentos específicos para eles. O nosso maior desafio é aplicar o nosso conhecimento apropriadamente e usar evidências científicas para determinar esses grupos, em vez de forçar categorias de doenças as quais vemos que não funcionam.

De que forma isso aconteceria na prática? Um exemplo de como isso funciona em outras áreas médicas é o caso da fibrose cística. Há um remédio para essa doença que é extremamente eficaz para apenas 4% dos pacientes, pois eles apresentam uma característica específica que os outros não têm. Se dermos esse remédio para todos os indivíduos com fibrose cística, ele vai parecer falho, mas se fizermos um diagnóstico preciso e dermos apenas para esses 4%, veremos que ele é extremamente eficaz. É isso o que precisamos fazer na psiquiatria.

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Quando os dados obtidos pelo RDoc poderão ser usado na prática clínica? Nós não sabemos ainda, talvez levem dez ou vinte anos para que isso aconteça. Mas se nós não começarmos essas pesquisas agora, nunca chegaremos lá. É um projeto experimental e muito caro, mas é muito importante fazer isso agora. Nós não aceitamos que uma pessoa diagnosticada com esquizofrenia ou outra doença tenha que conviver com a doença para sempre. Nós sentimos que é preciso curar essas doenças ou encontrar formas melhores de prevenir a piora de seus quadros.

Quando o RDoc passar a afetar a prática clínica, os sintomas perderiam a sua importância na hora do diagnóstico? Na verdade, nós pensamos em sintomas de forma diferente no RDoc. No DSM, os sintomas são importantes, mas eles estão lá para contribuir com um diagnóstico. Ou seja, você precisa ter um determinado número de sintomas para ter depressão, independentemente de quais sinais sejam esses. No RDoc, prestamos mais atenção na real dificuldade que cada sintoma representa. Dormir mal pode ser um sintoma de depressão, mas esse problema causa outros malefícios, como a desregulação da função cerebral. Então, precisamos tratar o problema do sono em si, e não apenas dizer que essa pessoa está com depressão. Cada sintoma é importante mesmo isoladamente.

O senhor acredita que o RDoc terá implicações na próxima revisão do DSM? Ainda não temos certeza disso, é muito cedo para dizer, mas talvez possa, sim. É possível que isso aconteça no DSM-6, ou então no DSM-7. Mas é preciso lembrar que o grupo de trabalho do DSM-5 determinou que ele será um documento vivo. Ou seja, não vamos precisar esperar tantos anos para ter uma edição completamente nova. Eles querem incorporar novas ideias de forma mais rápida. Então eu acho que conforme o nosso projeto gerar novos dados, ela já podem ser incorporadas no próprio DSM-5.

Como o senhor acha que vamos encarar uma doença psiquiátrica no futuro? Vamos encarar de forma diferente. Em vez de dizer que um paciente tem depressão, ansiedade ou stress pós-traumático, diremos que o seu problema é, por exemplo, uma disfunção nos circuitos cerebrais que regulam as emoções. O mesmo para as doenças psicóticas, como esquizofrenia. Diremos, por exemplo, que o problema do paciente é um transtorno de disfunção das sinapses. E então falaremos de grupos de genes que regulam ou que afetam a estrutura das sinapses. Pode ser que a combinação desses genes, e não mais a soma dos sintomas, nos deem ideias diferentes sobre esquizofrenia ou transtorno bipolar.

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