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Visita de Nancy Pelosi eleva tensão em Taiwan e põe mundo em alerta

A China quer dominar a ilha. Os EUA se intitulam guardiões da democracia taiwanesa. A viagem da presidente da Câmara americana coloca lenha na fogueira

Por Caio Saad Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h36 - Publicado em 5 ago 2022, 06h00
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  • Veterana política instalada há 35 anos seguidos em um gabinete na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, 82, presidente da Casa, fez carreira cutucando com vara curta o governo da China comunista em todas as ocasiões possíveis. No início, era um agrado a seu eleitorado: eleita e seguidamente reeleita pela Califórnia, tem na vasta comunidade de expatriados chineses da cidade sua maior base de apoio. Depois, virou uma espécie de marca registrada, repisada a cada eleição, o que só aprofundou a antipatia entre as duas partes. A três meses de uma votação difícil para renovar a Câmara e parte do Senado, Pelosi, de terninho rosa, máscara e cabeça erguida, desafiou alertas da China e desembarcou de um avião da Força Aérea, à frente de uma delegação de seis deputados, para uma visita oficial a Taiwan, ilha rebelde que os EUA apadrinham e que Pequim quer debaixo de seu domínio.

    arte Taiwan

    Ela não foi a primeira autoridade americana a prestigiar o governo eleito de Taiwan, mas há 25 anos que ninguém com seu cacife — é a segunda na linha de sucessão de Joe Biden, atrás apenas da vice Kamala Harris — pisava na ilha, e justamente em um momento de alta tensão entre China e Estados Unidos. Antes da viagem, o presidente Xi Jinping, em telefonema a Biden e sem mencionar Pelosi, avisou que “quem brinca com fogo pode ser consumido por ele”. A Casa Branca contra-argumentou que não tem jurisdição sobre a agenda de Pelosi e deixou vazar que preferia que ela evitasse a provocação. Impávida, a deputada seguiu em frente com uma visita de menos de 24 horas à capital, Taipei. Foi recebida como celebridade, com mensagens luminosas no prédio mais alto da cidade, e posou com a presidente Tsai Ing-wen. “A determinação dos Estados Unidos de preservar a democracia, aqui em Taiwan e no mundo todo, permanece inquebrantável”, declarou, em claro recado a Pequim. Antes, em artigo na imprensa, afirmou: “Não podemos ficar assistindo enquanto a China ameaça Taiwan — e a própria democracia”.

    O governo chinês, previsivelmente, retrucou com mais ameaças. “Diante do desprezo irresponsável dos Estados Unidos a argumentos sérios e insistentes, qualquer contrapartida chinesa será necessária e justificada”, disse Hua Chunying, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores. Aviões de combate sobrevoaram o disputado Estreito de Taiwan, que separa a ilha do continente, e o comando militar anunciou quatro dias de exercícios militares com munição real em cinco pontos ao redor da ilha, o que, na prática, instala um bloqueio naval temporário em uma das rotas comerciais mais movimentadas do planeta.

    JOGO DURO - Xi Jinping: ameaça contra quem “brinca com fogo” -
    JOGO DURO - Xi Jinping: ameaça contra quem “brinca com fogo” – (Intao Zhang/Getty Images)
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    Taiwan, conhecida antigamente por Formosa, nunca fez parte formal da China comunista. O derrotado presidente Chiang Kai-shek fugiu para lá depois de perder a guerra civil, em 1949, e montou um governo próprio, sustentado até hoje por Washington, inclusive por meio de mecanismos legais aprovados pelo Congresso americano. Por pressão da China, a maior parte dos países não reconhece Taiwan como nação soberana, entre eles os próprios Estados Unidos, que inventaram para a relação entre as duas partes o termo “ambiguidade estratégica” — a Casa Branca admite que a ilha faz parte da China, mas se compromete a garantir sua democracia. Depois do reconhecimento diplomático americano de Pequim, em 1978, alinhavado em um histórico encontro entre o presidente Richard Nixon e Mao Tsé-tung seis anos antes, Taipei acomodou-se em uma política de não confronto, enquanto se firmava como potência econômica regional. A subida ao poder de Xi, que tem na anexação de Taiwan — inclusive pela força — um ponto de honra de seu governo, complicou e inflamou as contendas entre os dois lados.

    Além de promover manobras militares cada vez mais ameaçadoras em volta da ilha — às quais os militares taiwaneses respondem com seus próprios exercícios —, Pequim tomou a iniciativa de declarar soberania integral sobre o Estreito de Taiwan, que Taipei considera uma via navegável internacional. A decisão chinesa, se posta em prática à risca, é um baque tanto para a economia da ilha como para a indústria eletrônica internacional. Taiwan é, sozinha, fornecedora de boa parte dos chips que movem todos os equipamentos essenciais à vida cotidiana, de celulares a computadores e videogames. Uma única empresa taiwanesa, a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company (TSMC), supre metade do mercado mundial, tendo faturado quase 100 bilhões de dólares em 2021. Com esse trunfo na mão, a economia taiwanesa cresceu na pandemia ao ritmo mais acelerado em dez anos, o que contribuiu para sua renda per capita ser três vezes mais alta do que no continente.

    TENSÃO - Fragata taiwanesa lança míssil em exercício naval: as manobras militares se intensificaram em torno da ilha -
    TENSÃO - Fragata taiwanesa lança míssil em exercício naval: as manobras militares se intensificaram em torno da ilha – (Sam Yeh/AFP)
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    Em 1997, outro presidente da Câmara americana, Newt Gingrich, visitou Taiwan e irritou Pequim, mas se tratava de um republicano sem associação com o então presidente democrata Bill Clinton. “Pelosi é do mesmo partido que Biden, o que abre espaço para a China assumir que ela tem a bênção do presidente”, analisa Meredith Oyen, professora de história e estudos asiáticos da Universidade de Maryland. Apesar dos protestos em contrário, Biden, caso se empenhasse de verdade — e fosse um líder forte —, poderia ter convencido a deputada a mudar de ideia. No contexto atual, porém, uma chacoalhada vigorosa que fique um ponto aquém do conflito aberto está no rol das ferramentas diplomáticas americanas — o próprio Biden declarou há dois meses, e depois desdisse, que poderia apoiar militarmente Taiwan diante de uma ameaça de invasão chinesa. A subida de tom é resultado direto de uma lição aprendida na guerra da Ucrânia: a de que levar dirigentes autocratas em banho-maria, como foi feito durante décadas com o russo Vladimir Putin, pode desaguar em surpresas extremamente desagradáveis.

    Decidido a tirar dos Estados Unidos a condição de maior potência do planeta, Xi tem se dedicado a ampliar sua influência nos organismos internacionais e a financiar projetos milionários mundo afora, ao mesmo tempo que fortalece suas Forças Armadas. Nessa cruzada geopolítica, as relações entre Taipei e Pequim atravessam seu pior momento em quatro décadas, um abismo que a decisão de Putin de invadir a Ucrânia sem nenhuma justificativa decente só fez aprofundar. A desavença, evidentemente, intensifica o já altamente volátil clima de tensão entre chineses e americanos, aliados incondicionais de Taiwan. “As relações entre China e Estados Unidos passam por um período de profunda fluidez. Embora existam no horizonte poucos indicadores de uma redução das tensões, a situação não chegou a um ponto tão ruim que não possa piorar”, resume Jude Blanchette, pesquisador de assuntos chineses no Center for Strategic and International Studies (CSIS), em Washington.

    TRÉGUA - Nixon e Mao Tsé, em 1972: retomada de relações -
    TRÉGUA - Nixon e Mao Tsé, em 1972: retomada de relações – (./Getty Images)
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    Apesar das declarações incendiárias de parte a parte, os especialistas veem pouca probabilidade de um conflito armado envolvendo China e Taiwan a curto prazo. Pequim tem hoje mais de 2 milhões de soldados à disposição (e um contingente ainda maior caso precisasse), contra 160 000 taiwaneses, mas a geografia dificulta uma invasão. “A pequena costa de Taiwan, com apenas 400 quilômetros, tem poucos pontos favoráveis ao desembarque de tropas. Esse fato e a tecnologia de monitoramento disponibilizada pelos Estados Unidos dificultam um ataque”, explica Zeno Leoni, professor do Departamento de Estudos de Defesa do King’s College, em Londres. Mas com Xi se preparando para obter um inédito terceiro mandato no congresso do Partido Comunista nos próximos meses e Biden — e Pelosi — fazendo de tudo para reverter as projeções de que o Partido Republicano conseguirá maioria na Câmara e no Senado em novembro, a pequena ilha de 23 milhões de habitantes deve seguir ainda por um bom tempo na pauta das provocações mútuas das duas potências.

    Publicado em VEJA de 10 de agosto de 2022, edição nº 2801

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