Ainda falta um ano e três meses para a eleição presidencial dos Estados Unidos e as primárias para a escolha de candidatos nem começaram, mas o ringue já está montado e os virtuais adversários — em um canto, o atual presidente democrata, Joe Biden, 80 anos, e no outro o republicano Donald Trump, 77 — trocam com frequência sopapos verbais, diretos ou via apoiadores. Nos últimos dias, as farpas de ambas as partes foram dirigidas a processos na Justiça, terreno onde cada um tem seu fardo para carregar. A fanfarra de Biden bateu bumbo ao ser anunciada mais uma denúncia contra Trump, a terceira em quatro meses, pela grave acusação de conspiração para mudar o resultado da votação de 2020, que ele perdeu, e para impedir a certificação de Biden pelo Congresso. O bonde trumpista, por sua vez, saudou com a algazarra usual a decisão de uma juíza de mandar de volta para a mesa de negociação um acordo entre o Departamento de Justiça e Hunter Biden, 53, filho do presidente, que o livraria de eventual pena de prisão por sonegação fiscal e posse ilegal de arma. Para os apoiadores de Trump, Hunter é a bala de prata com capacidade de fulminar a reeleição de Biden.
Com os dois pré-candidatos empatados em 43% das intenções de voto, segundo as pesquisas mais recentes, as trepidações no Judiciário impactaram campanhas e incendiaram discursos. Antes de se apresentar ao tribunal em Washington para ouvir as acusações, Trump usou sua rede social, a Truth, para mais uma vez desancar o “descompensado” promotor especial Jack Smith e vociferar contra a “perseguição” de que é alvo — reação esperada e abraçada com fervor pela sólida base trumpista, que atualmente lhe dá 37 pontos de vantagem sobre seu principal rival, o governador da Flórida, Ron DeSantis. O novo processo envolve o ex-presidente e outros seis “co-conspiradores” em atos que atentam contra o estado de direito, ao buscar insistentemente cooptar funcionários a fraudar votações nos estados, convencer deputados a pedir recontagens para perturbar o processo e insistir com o então vice-presidente Mike Pence, presidente do Senado, para se negar a confirmar a vitória de Biden — delitos que incorrem em penas de cinco a vinte anos de prisão. Trump se livrou da acusação mais grave, de insurreição, por insuflar a turba que invadiu o Congresso logo após um comício seu, mas o relatório de Smith deixa claro que ele não fez nada para impedir o ataque. “É uma situação inédita. Os Estados Unidos vão levar a julgamento um ex-presidente acusado de tentar destruir o sistema democrático do país”, diz Dale Carpenter, professor de direito constitucional da Southern Methodist University, do Texas.
Primeiro presidente americano a se tornar réu, ele enfrenta mais dois processos relacionados a seu mandato (sem falar naquele em que foi condenado a pagar 1 milhão de dólares à colunista E.Jean Carroll por assédio nos anos 1990 e nos vários inquéritos sobre impropriedades nos negócios da família). Em uma ação, Trump é acusado de colocar a segurança nacional em risco ao manter, propositadamente, documentos secretos em Mar-a-Lago, o clube-condomínio onde mora, na Flórida, depois de deixar a Casa Branca. Essa investigação, também tocada pelo obstinado Smith, ganhou mais um capítulo com o envolvimento de Carlos de Oliveira, imigrante português que cuidava da manutenção de Mar-a-Lago e que teria recebido ordens do “patrão” para apagar imagens das câmeras de segurança do local — ele já se apresentou à Justiça, mas ainda não depôs. Trump também é réu em uma ação que apura artifícios usados por ele para disfarçar ter pago 130 000 dólares à atriz pornô Stormy Daniels para que ela se calasse sobre um caso antigo, durante a campanha eleitoral de 2016. “Mesmo denunciado, Trump está apto para concorrer. Mas, se for considerado culpado antes da eleição, há risco de se criar uma crise constitucional”, adverte Carl Tobias, professor de direito da Universidade de Richmond.
Enquanto a situação de Trump se complica a cada dia, o lado republicano se apega aos muitos pecados de Hunter Biden para enfraquecer tanto o mandato quanto a reeleição do pai. No Congresso, a bancada da direita radical chiou contra o acordo agora adiado e a “leniência” do Departamento de Justiça para lidar com o filho do presidente — nele, Hunter comprovou pagamento de 1,5 milhão de dólares em impostos atrasados e ficaria livre de pena de prisão por haver comprado uma arma de fogo em 2018, quando era dependente de drogas, o que é proibido por lei. A sobrevida da ação e, mais ainda, a possível condenação de Biden filho serviriam para desmoralizar tanto ele quanto o pai, mas a ambição maior dos congressistas trumpistas é conseguir enredar Biden nas (várias) negociatas de Hunter quando o pai era vice-presidente de Barack Obama. O partido toca uma investigação própria na Câmara dos Deputados, onde tem maioria, e espera acumular evidências suficientes para iniciar um processo de impeachment contra Biden.
O histórico de encrencas de Hunter Biden é prolífico, a começar por sua presença no conselho de empresas da Ucrânia e da China na época em que Biden era vice-presidente, posição pela qual ganhou milhões de dólares. Às vésperas da eleição de 2020, o jornal conservador New York Post teve acesso ao conteúdo de um computador deixado por Hunter para conserto em uma loja e nunca reclamado, no qual e-mails sugeriam o uso da influência do pai nos negócios do filho. Investigada pelo Congresso e pelo Departamento de Justiça, a ligação nunca foi comprovada. O material explosivo encontrado no computador continha também fotos e vídeos de Hunter sem roupa, sob efeito de crack e mantendo relações sexuais. O material foi censurado nas redes sociais e tratado como desinformação plantada pela Rússia, antes de ser finalmente considerado legítimo.
O filho-problema também namorou a viúva do próprio irmão, Beau, que morreu de câncer no cérebro em 2015. Pai de três filhas adultas, ele teria se reabilitado com o pai na Casa Branca: casou-se de novo, tem um menino de 3 anos e se tornou um artista bem-sucedido na Califórnia, onde suas pinturas fazem sucesso. Mesmo assim, segue no noticiário: travou uma batalha judicial para não assumir a filha Navy, de 4 anos, que teve com a dançarina Lunden Roberts, encerrada em recente acordo financeiro após comprovação da paternidade em exame de DNA. “Não tenho nenhuma lembrança desse encontro”, declarou Hunter, que não conhece Navy. Biden mesmo só a incluiu na família, nas entrelinhas, muito discretamente, em entrevista há poucos dias: “Tenho sete netos (e não seis, como sempre disse) e com os cinco que sabem usar celular eu falo ou troco mensagens todo dia”. Daqui até 5 de novembro de 2024, a política americana vai dar muito o que falar.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2023, edição nº 2853