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Tragédia americana: opioides matam mais do que os massacres

Em 2016, overdoses de heroína e analgésicos à base de ópio mataram 63.600 pessoas nos EUA; 26% havia sido prescrito por médicos

Por Ligia Hougland
Atualizado em 18 set 2018, 12h59 - Publicado em 13 set 2018, 08h00
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  • No início deste mês, a pop star Demi Lovato, de 25 anos, admitiu em sua conta no Instagram ter sofrido uma overdose de opioide. No texto, ela se disse relapsa e prometeu focar na sobriedade e na recuperação. Em julho, paramédicos não hesitaram em aplicar na moça a substância naloxona, usada para reverter a depressão respiratória causada pela overdose, ao atendê-la em seu apartamento em Hollywood Hills, na Califórnia.

    Tragédias frequentes na sociedade americana, os massacres em escolas e locais públicos despertam atenção dentro e fora dos Estados Unidos. No primeiro semestre deste ano, quarenta pessoas foram mortas em decorrência desses ataques armados. Menos alardeado e mais disseminado no país é outro trágico fenômeno americano: o consumo recorrente e, muitas vezes bem acima da dose recomendada, de drogas legais e essenciais para o tratamento de dores insuportáveis. Particularmente, os opioides.

    Em 2016, 660 pessoas morreram em decorrência dos massacres. No mesmo ano, houve 63.600 casos de morte por overdose, segundo relatório do Centro Nacional para Estatísticas em Saúde (NCHS), órgão que faz parte dos Centros dos Estados Unidos para Controle e Prevenção de Doença, nacionalmente conhecido pela sigla CDC. Cerca de 66% dessas mortes – 42.249 pessoas – estavam ligadas aos opioides. O quadro é considerado epidêmico.

    A família dos opioides inclui drogas ilegais, como a heroína e o fentanil produzido de forma ilícita, além de substâncias analgésicas usadas em tratamento médico, como a oxicodona e a hidrocodona.

    Apesar de a epidemia ter aumentado rapidamente, foi ignorada por muitos anos até tornar-se um dos fatores causadores da gradual redução da expectativa de vida nos EUA. Em 2014, ela era de 78,9 anos. Em 2015, caiu para 78,7. Em 2016, baixou para 78,6 anos.

    “Não sou dado a fazer declarações dramáticas, mas acho que devemos mesmo nos preocupar. O problema da overdose é de saúde pública, com o qual precisamos lidar. Temos de controlar isso”, disse Robert Anderson, chefe do Departamento de Estatísticas de Mortalidade do NCHS.

    Em outubro passado, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, declarou que a crise de uso de opioides é uma emergência de saúde pública. Seu governo teve sucesso em aumentar a conscientização dos americanos sobre a gravidade do problema, que cada vez ganha mais espaço nos noticiários e nas rodas de conversas. A preocupação do governo também foi expressa em outras ocasiões.

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    Em Columbus(Ohio), Trump e a primeira-dama, Melania, visitaram bebês em uma UTI e crianças vítimas de síndrome de abstinência neonatal no Nationwide Children´s Hospital no último dia 24. Todas nasceram de mães viciadas em opioides. Da iniciativa, porém, maior destaque foi dado ao fato de o presidente ter pintado de azul uma das listras vermelhas da bandeira americana.

    Especialistas e pessoas diretamente afetadas por essa crise salientam que, embora importante, a simples conscientização não é suficiente. Será preciso adotar um plano proativo, eficaz e abrangente para vencer a crise.

    “Precisamos adotar uma perspectiva em âmbito nacional. Overdose por opioides causa muito mais mortes do que os acidentes de trânsito e os tiroteios em escolas. É preciso tratar isso como uma crise, e não como um problema constante que faz parte da sociedade”, diz Lisa Lutz.

    Em agosto de 2016, Lisa encontrou a filha Kristina, de 21 anos, morta no banheiro de sua casa em decorrência do uso de heroína misturada com carfentanil, uma substância usada para sedar elefantes. Nascida na Rússia e adotada aos 16 meses pela família Lutz, Kristina mostrou ser uma menina cheia de empatia desde a infância. A garota, porém, sofria de ansiedade. Lisa acredita que, com a idade, a filha estava cada vez mais ciente do peso de sua doença.

    O rapaz de 24 anos que vendeu a droga à Kristina foi condenado, em julho de 2017, a  catorze anos de prisão, com a possibilidade de ser solto em oito anos. Durante seu julgamento, o traficante disse “sentir-se seguro pela primeira vez em muito tempo” na prisão. Também usuário de drogas, ele passou vários meses preso, à espera da definição de sua sentença.

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    “Não nos sentimos vingados. Foi tudo muito triste. Abracei os pais [do traficante] e disse que, pelo menos, eles ainda poderiam ver seu filho, enquanto eu jamais veria minha filha de novo”, disse Lisa.

    Nem todas as mortes dessa epidemia envolvem traficantes, drogas ilegais e julgamentos. Cerca de 23% das overdoses fatais registradas em 2016 envolviam drogas para uso médico.

    Nos Estados Unidos, é bastante comum médicos e dentistas receitarem opioides para que seus pacientes possam controlar a dor, mesmo depois de procedimentos comuns, como extração de um dente do siso ou pequenas cirurgias realizadas em consultório.

    Esse hábito pode contribuir para que um paciente desenvolva dependência de opioides.

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    James e Dennis
    James e Dennis (no colo, irmão que morreu por complicações de saúde relacionadas ao vício em opioides) (Arquivo Pessoal/Arquivo pessoal)

    “Eles parecem não se importar muito com isso. Sempre que tenho algum procedimento médico, fico me alertando que não posso receber esse tipo de droga, apesar de ninguém perguntar nada”, diz James McG, um ex-dependente de drogas que, há mais de uma década, superou o vício.

    O irmão mais jovem de James morreu em 2006, aos 38 anos, de problemas de saúde relacionados ao uso de heroína.

    Esquecimento

     A atual crise de opioides não pode ser explicada como um fenômeno de uma sociedade cada vez mais conectada ao mundo virtual, assoberbada pelas novas tecnologias e com menos interações pessoais. Os americanos já tiveram de enfrentar o mesmo problema algumas vezes em pouco mais de 100 anos.

    No fim do século XIX, o país viveu uma epidemia praticamente idêntica à atual, com cerca de 313.000 americanos viciados em morfina injetada e em ópio. A Guerra Civil Americana (1861-1865) provocou a popularização da morfina. Os médicos da época não hesitavam em receitá-la, pois era uma droga lucrativa para o setor de saúde e muito eficaz no combate da dor dos pacientes, submetidos a procedimentos torturantes. Assim nasceu a primeira geração de americanos viciada em opioide.

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    No começo do século XX, foram aprovadas diversas legislações para combater esse primeiro surto, como a Lei de Alimentos e Drogas Puras (1906), a Lei Harrison Antinarcóticos (1914) e a Lei da Heroína (1924).  As novas normas meramente contiveram o problema, e a crise latente ressurgiu com força no final dos anos 1950, e acompanhou o auge do rock clássico, nos anos 1970.  Uma das músicas que melhor representam a relevância da droga em sua época é Sister Morphine (Irmã Morfina), dos Rolling Stones, lançada em 1971.

    “Usar drogas fazia parte da cultura dos roqueiros de Nova York e ainda parecia chique nos anos 1990”, diz James, colecionador de guitarras que tem como ídolo Keith Richards, dos Rolling Stones, o mais famoso viciado em heroína do planeta. “Keith hoje é totalmente limpo, o que prova que sempre é possível vencer o vício”, completa o colecionador.

    A crise atual tem suas raízes nos anos 1990, quando a indústria farmacêutica convenceu a comunidade médica de que os opioides não traziam um risco significativo de dependência. Assim, eles passaram a ser receitados largamente, o que levou ao uso indevido desses medicamentos.

    Cerca de 25% dos pacientes que recebem tratamento para dor com opioide usam o medicamento erroneamente, segundo o Instituto Nacional de Abuso a Droga (NIDA), e aproximadamente 10% deles desenvolvem um distúrbio relacionado ao uso de opioide.

    O instituto também alerta para o fato de que cerca de 5% dos pacientes que usam indevidamente opioides receitados por médicos passam a consumir heroína. Aproximadamente 80% dos usuários de heroína começaram pelo consumo indevido de opioides para uso médico.

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    O aumento das mortes por overdose de opioides deixou claro que essas drogas representam um alto risco de dependência para os usuários, que não se encaixam no estereótipo de pária da sociedade. Um exemplo disso é Cindy McCain, mulher do senador John McCain, candidato republicano à Casa Branca derrotado por Barack Obama em 2008 que morreu de câncer neste mês.

    Cindy começou a usar oxicodona para aliviar a dor que passou a sentir depois de duas cirurgias na coluna realizadas em 1989. A loira bela e milionária – herdeira da Hensley & Co., uma das maiores distribuidoras da Anheuser-Busch – desenvolveu aos poucos a dependência à droga. Na década de 90, ela chegava a ingerir vinte cápsulas por dia.

    Em 2015, cerca de 2 milhões de americanos sofriam de distúrbios relacionados ao uso de medicamentos analgésicos com opioide, enquanto 591.000 apresentavam distúrbio por uso de heroína. Ambas as condições podem ser concomitantes. Com a crise agora evidente, os americanos não podem mais ignorá-la.

    Combate abrangente

     Os especialistas advertem que, para superar a epidemia e afastá-la de vez da sociedade americana, é fundamental a adoção de um plano de ataque abrangente. Com isso em mente, o Departamento de Serviços de Saúde e Humanos (HHS) está focando seus esforços em cinco prioridades: aumentar o acesso de adictos a tratamentos e serviços de recuperação, promover o uso de drogas capazes de reverter overdoses, aprofundar o conhecimento sobre a epidemia, apoiar mais as pesquisas de ponta sobre dor e dependência e promover melhores práticas no controle da dor.

     A comunidade médica também está discutindo estratégias para prevenir a dependência dos pacientes em opioides. Entre elas estão diretrizes sobre a prescrição médicas desses medicamentos, a duração do tratamento e as doses adequadas para cada caso tratado.

    “Acabou o tempo em que se escreviam receitas para cobrir trinta dias”, diz Mark Bicket, anestesista e diretor do Programa de Bolsa em Medicina para Controle Multidisciplinar da Dor da Universidade Johns Hopkins.

    Kristina Lutz
    Kristina Lutz (Arquivo pessoal/Arquivo pessoal)

    A mãe de Kristina é prova de que, mesmo os momentos mais trágicos, pode ser necessária uma atitude generosa e pragmática em favor do combate a essa epidemia. Menos de 24 horas depois da morte de sua filha, Lisa recebeu um telefonema dos Institutos Nacionais da Saúde (NHI) pedindo que ela doasse o cérebro de Kristina para um programa de pesquisa sobre doenças mentais e dependência a substâncias químicas.

    “Foi uma decisão muito difícil. Mas, no dia seguinte, eu disse sim. Sinto pelos pais que têm filhos sofrendo de dependência e que nunca sabem quando vão receber uma notícia ruim”, afirmou ela”. “É preciso mais pesquisa médica sobre o que funciona para combater isso. Queremos que algo positivo venha do que aconteceu com Krissy.”

     

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