Sem governo, sem indústria, sem agricultura, sem turismo e sem riquezas, o Haiti, país mais pobre das Américas, pena há décadas sob a sinistra sombra de lugar onde tudo é péssimo, mas sempre pode piorar. Neste mês de março, piorou: aproveitando uma viagem do impopular primeiro-ministro Ariel Henry ao Quênia, para tentar garantir um reforço da precária segurança em Porto Príncipe com uma tropa de soldados quenianos, as gangues que controlam quase toda a capital se uniram e tomaram de vez o poder. “Se Ariel Henry não renunciar, caminhamos para uma guerra civil que levará a um genocídio”, insuflou Jimmy Chérizier, o Babekyou, pronúncia no idioma local de Barbecue (churrasco, em inglês, referência tanto ao fato de vender espetinhos na infância quanto ao de queimar vivos seus inimigos), falando em nome do “G9”, o sindicato de quadrilhas que, em mais uma ironia semântica, inspirou seu nome no G7 das potências ocidentais. Acuado, Henry anunciou, na terça-feira 12, que vai se afastar do governo.
O país vive um entra e sai de presidentes desde o desmoronamento, em 1986, de trinta anos de feroz ditadura do clã Duvalier, pai e filho apelidados de Papa e Baby Doc. Henry apoderou-se do cargo de primeiro-ministro após o assassinato do presidente Jovenel Moïse, em 2021, onde ficaria até a convocação de novo pleito, indefinidamente adiado. No vazio instalado pela crise institucional, violentas gangues foram tomando conta de Porto Príncipe e, quando Henry viajou, não perderam tempo: invadiram duas prisões da capital e libertaram 4 000 detentos, ocuparam o porto e o aeroporto e trocaram tiros com a guarda do palácio presidencial. Impedido de voltar, o primeiro-ministro refugiou-se em Porto Rico. “Peço a todos que permaneçam calmos e façam tudo o que puderem para que a paz e a estabilidade voltem o mais rápido possível”, disse em comunicado.
O acordo da renúncia, obtido sob pressão dos Estados Unidos — espécie de garantidor da existência aos trancos e barrancos do Haiti — durante uma reunião na Jamaica, prevê a criação de um conselho de transição encarregado de tomar decisões por maioria de votos. Os sete membros, a serem escolhidos, devem ter ficha limpa, estão impedidos de se candidatar nas eleições a serem marcadas e se comprometem a acatar a resolução do Conselho de Segurança da ONU que aprova o envio de forças de vários países para ajudar. O conselho terá de lidar com 59% da população abaixo da linha de pobreza e milhares de mortos, sequestrados e desalojados. Como se não bastasse, o país está na rota das catástrofes naturais — em 2010, um gigantesco terremoto na capital ceifou a vida de 220 000 pessoas.
Atualmente, o Haiti conta com um terço do reforço internacional recomendado pela ONU, e os 2 000 quenianos que se preparavam para atuar lá pouca diferença fariam. “Seria uma missão suicida, no pior cenário, e um desperdício de dinheiro, no melhor”, diz o americano Daniel Foote, ex-enviado especial ao país, que calcula em pelo menos 5 000 integrantes experientes a força necessária para repor a ordem. A nova missão internacional aprovada pelas Nações Unidas, a pedido do próprio governo haitiano e com apoio do Brasil (que por treze anos manteve soldados em Porto Príncipe), ainda não saiu do papel. Os poucos militares e policiais locais trabalham em condições precárias e são alvo preferencial das gangues, que dispõem de recursos milionários provenientes de extorsão e sequestros. “A proximidade do Haiti com países produtores de drogas e com consumidores como os Estados Unidos alimenta a atividade criminosa”, ressalta Christopher Sabatini, pesquisador do think tank britânico Chatham House. Contrariando o ditado, no Haiti, pior do que está pode, sim, ficar.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2024, edição nº 2884