Tem espião na linha: os alvos do software israelense Pegasus
Vazamento expõe uso do programa para invadir celulares de políticos, jornalistas e ativistas. Qual o limite da bisbilhotagem?
Em 2013, Edward Snowden, consultor de TI a serviço da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos, fez o mundo tremer ao revelar a imensa lista de pessoas sob escrutínio dos órgãos de inteligência americanos via, principalmente, acesso facilitado por operadoras de celulares (até a então presidente Dilma Rousseff estava na lista). De lá para cá, espionar a privacidade alheia ficou mais fácil graças a softwares criados especialmente para esse fim — caso do Pegasus, da empresa israelense NSO. O programa bisbilhoteiro, capaz de invadir todo e qualquer celular, acessar fotos e mensagens (inclusive as de aplicativos criptografados, como o WhatsApp) e ainda localizar o usuário, é propagandeado como ferramenta imprescindível contra criminosos e terroristas. Na prática, seu uso é mais generalizado. Segundo listas vazadas e divulgadas por um consórcio de veículos de comunicação, catorze chefes de Estado, cerca de 600 políticos e funcionários de alto escalão e centenas de jornalistas e ativistas se encontram entre 50 000 números de telefones de mais de cinquenta países invadidos pelo Pegasus (nem todos efetivamente hackeados).
Constam da lista os números do presidente francês Emmanuel Macron, do ex-primeiro-ministro Edouard Philippe e de outros catorze ministros de seu gabinete. Também aparecem no rol de vítimas o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, o primeiro-ministro paquistanês Imran Kahn, o rei Mohammed IV do Marrocos, e até Tedros Adhanom, diretor da Organização Mundial da Saúde (OMS). O país com o maior número de espionados é o México: 15 000 pessoas de diversos setores da sociedade civil. Para acessar as informações, o sofisticado spyware israelense utiliza brechas na segurança de aplicativos e sites. “O Pegasus consegue driblar os antivírus e tem a capacidade de se autodestruir após três meses de inatividade, o que torna a identificação dos aparelhos grampeados ainda mais difícil”, explica Rodolfo Avelino, especialista em segurança da informação.
A NSO negou categoricamente a veracidade das listas e o mau uso de seu programa. “As acusações são tão absurdas e fora da realidade que estamos considerando abrir um processo por difamação”, esbravejou a empresa em um comunicado. Embora o grupo não divulgue o nome de clientes, sabe-se que o Pegasus já foi vendido a pelo menos quarenta países. No Brasil, executivos da NSO participam de eventos de telecomunicação e rodam o país em busca de contratos. Em 2019, o sistema foi empregado para localizar sinais de celular por militares israelenses que ajudaram na busca de vítimas do rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, Minas Gerais. Em maio, o Ministério da Justiça abriu licitação para a compra de um aparelho espião e o Pegasus chegou a ser cogitado, mas a empresa desistiu de concorrer quando se revelou o envolvimento irregular do vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente, nas negociações.
Em alguns casos, os objetivos da espionagem agora revelada ficam evidentes. O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, está sendo apontado como beneficiário da invasão de mais de 1 000 celulares de jornalistas, ativistas e de um de seus principais adversários políticos, o deputado Rahul Gandhi. Suspeita-se fortemente da mão da Arábia Saudita na invasão do aparelho da noiva e de outras pessoas próximas a Jamal Khashoggi, o oposicionista assassinado a mando da monarquia, em datas próximas ao crime. O governo do mexicano Enrique Peña Nieto, antecessor de Andrés Manuel López Obrador, o AMLO, estaria por trás da invasão dos aparelhos da mulher e dos filhos dele durante a campanha eleitoral.
O governante de Dubai e primeiro-ministro dos Emirados Árabes Unidos, xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum, é tido como maior interessado na infiltração do Pegasus no celular de duas rebeldes em seu palácio: a filha Latifa, que o acusou de prisão e tortura, e a sexta mulher, Haya, que fugiu com os dois filhos para Londres. O escândalo atual respingou no governo de Israel, acusado de fazer vista grossa à venda do spyware a governos repressivos. “Não é só o Pegasus. Há uma série de ferramentas semelhantes para qualquer país que se interessar”, diz Gene Spafford, professor da Universidade Purdue, nos Estados Unidos. Finda a Guerra Fria, com seus espiões treinados em disfarce e infiltração, o perigo mora agora no pequeno dispositivo eletrônico do qual ninguém desgruda.
Publicado em VEJA de 28 de julho de 2021, edição nº 2748