A última vez que Victoria Eugenia Henao esteve com o marido foi em agosto de 1993. Chegou vendada ao local conhecido como Casa Azul e passou algumas semanas, com o casal de filhos, no que viria a ser o esconderijo final de Pablo Escobar, o megatraficante colombiano. Escobar morreu em um tiroteio menos de quatro meses depois. Viúva, Victoria, chamada pelo marido de Tata (ela o chamava de Mister), precisou negociar a sobrevivência com o rival cartel de Cáli, mudar-se para Moçambique e de lá para a Argentina, onde trocou seu nome para Maria Isabel Santos Caballero e começou a trabalhar como corretora de imóveis para sustentar a casa. Essas e outras histórias são contadas na autobiografia Sra. Escobar: Minha Vida com Pablo (Editora Planeta), que chega às livrarias brasileiras em 6 de maio. Aos 58 anos, vivendo em Buenos Aires e fazendo palestras como coach, Maria Isabel considera que só agora pode dar por encerrado o longo processo de pesquisar e entender o psicopata por trás do companheiro metido a romântico. A seguir, sua primeira entrevista a um veículo da imprensa brasileira.
A senhora passou quase duas décadas ao lado de Pablo Escobar. Quanto tempo levou para entender que ele era um megatraficante e assassino? Sabia que Pablo mexia com drogas. Perguntava, perguntava, e ele dizia: “Não se preocupe, amor. Estou cuidando da família”. Nos primeiros anos, nunca imaginei que Pablo tivesse essa dimensão toda, muito menos que fosse um homem perigoso, um assassino. Quando a guerra entre os cartéis e o governo recrudesceu na Colômbia, a coisa foi ficando mais feia. Pablo acabou sendo preso muitas vezes, eu questionava por que e ouvia: “Tudo o que acontece de ruim neste país falam que é culpa minha. Não é”.
Mesmo diante de tantas evidências, como o assassinato do ministro Rodrigo Bonilla, inimigo de seu marido, a senhora continuava acreditando nele? Minha reação foi ficar paralisada, em silêncio, muda. Era movida por uma mistura de amor, um forte senso de permanência da família e medo. Sabia que havia algo de muito errado ali, claro, porque ele vivia fugindo e nos mandava toda hora para uma casa diferente, alegando proteção. Ficamos muito tempo longe um do outro. Nos últimos dez anos de uma união de dezessete, quase não dividimos o mesmo teto. Era sofrido, mas me mantinha em uma bolha de conforto e segurança.
A senhora chegou a encontrar o filho do ministro Bonilla depois do assassinato de seu pai por Escobar. O que disse a ele? Abracei o rapaz e pedi perdão pela dor causada por Pablo.
Saber que seu marido era ao menos suspeito de tantas atrocidades não criou nenhuma fissura no casamento nem abalou sua vontade de ficar com ele? Sinceramente, nunca parei de amar Pablo, mas, sim, pensei em deixá-lo várias vezes. Até tentei. Um dia, cheguei para ele e disse: “Não dá mais”. E ele reagiu: “Está maluca? Família é família. Vocês são a razão de tudo”. Um advogado que consultei resumiu: “Separar é impossível”. Não havia saída para mim nessa história. Já pensou? Deixar Pablo e ir morar com a minha mãe? No dia seguinte, dez capangas estariam na porta da casa atrás de mim, para me buscar.
“Quando a gente brigava, Pablo selava a paz com flores. Certa vez veio com um BMW. Comecei a gostar do mundo da arte e tive até um Salvador Dalí. Mal sabia que esse quadro salvaria minha vida”
Não a incomodava viver uma vida de luxos sabendo de onde vinha o dinheiro? Esse era um setor em que eu não entrava. Ele me dava as coisas, vivíamos muito bem, mas eu atribuía tudo aquilo aos negócios de Pablo, sem ficar cutucando os detalhes. Não era meu papel fazer perguntas. Nesse sistema machista que vigorava em nossa casa — eu, uma mulher muito jovem, onze anos mais nova que ele —, o esperado era que cuidasse dos filhos e mantivesse o lar. E cumpri minha parte direitinho, como havia prometido ao padre.
Chegou a deslumbrar-se com a riqueza? Era muito bom poder ir à Europa e aproveitar o que havia de melhor. Quando Pablo e eu discutíamos, ele selava a paz com flores e presentes. Certa vez veio com um BMW. Comecei a gostar do mundo da arte. Comprava quadros para decorar nossas propriedades, envolvi-me no universo das galerias e tive até um Salvador Dalí. Mal sabia que esse quadro viria a salvar a mim e meus filhos depois da morte de Pablo.
Como isso aconteceu? Ele havia morrido fazia um ano, e o pessoal do cartel de Cáli me chamou para uma conversa. Fui com meu irmão, achando que encontraria por lá umas cinco pessoas, no máximo. Quando cheguei ao local da reunião, eram cinquenta e queriam cobrar pela vida da minha família. “Quanto vocês querem?”, perguntei. Tive de dar a eles propriedades e o meu Dalí. O curioso é que esse quadro tinha sobrevivido a um ataque a uma de minhas casas: lançaram gasolina na estrutura, e boa parte do que estava dentro se perdeu. Mas não o Dalí.
Quanto sobrou da fortuna de Pablo Escobar? Ninguém acredita, mas não sobrou nada. Tivemos de dar uma parte aos bandidos do lado inimigo, a outra foi confiscada pelo governo colombiano. Hoje moro de aluguel em Buenos Aires, vivendo de palestras e serviços de coaching, área em que me especializei. Meus filhos têm carreira própria. Seguiram em frente, distantes do crime.
A senhora afirma que não teve participação nos crimes cometidos por seu marido, mas foi alvo de dois processos por lavagem de dinheiro, um ainda em andamento. É culpada? De jeito nenhum. No primeiro processo, já arquivado, fui vítima de uma extorsão. Um contador se aproximou de minha família, ficou amigo e descobriu que eu era ex-mulher do Pablo. Aí começou a pedir dinheiro para não revelar minha identidade. Eu pagava, pagava, até que um dia não paguei e o processei pelo achaque. E ele me processou de volta, criando um enredo em que me acusava de lavagem de dinheiro. Esse processo, de 1999, foi arquivado por completa falta de provas. Mas fiquei três meses presa. Agora enfrento outro processo.
A senhora é acusada de intermediar o contato entre dois empresários que viriam a se envolver com o narcotráfico, certo? Isso. Apresentei um ao outro num período em que atuava no ramo imobiliário, depois da morte de Pablo. Eles fizeram negócio e eu ganhei uma comissão. O dinheiro, porém, é lícito — nem sabia que os dois tinham envolvimento com atividades criminosas. Mudamos de país, de nome, tentamos não viver no passado, mas nunca deixaremos de ser a família Escobar, e isso tem um grande peso.
Seu marido morreu há 25 anos. Nunca quis reconstruir sua vida afetiva? Fiquei tão voltada para a sobrevivência que não sobrou espaço para mais nada. E há outro problema: quando os homens descobrem que sou a viúva de Pablo, eles se afastam. Ninguém quer se misturar com essa história.
Pablo Escobar foi um notório colecionador de amantes. Isso a feria? Muito. Era uma dor constante. Mas ele sempre dizia que não tinha importância, que nenhuma delas chegava aos meus pés. Se eu ficava enfurecida, ele comprava flores e escrevia cartas românticas. Escrevia bem, aliás. Quando tinha dúvida sobre a ortografia de uma palavra, ia consultar o dicionário.
A jornalista Virginia Vallejo chegou a escrever um livro sobre seus anos como amante de Escobar. A história que ela conta faz sentido? Virginia já disse que eu sou uma sem-vergonha, que evito o sobrenome Escobar mas não tenho pudor de usar seu dinheiro. Ela poderia me dizer que dinheiro é esse? Virginia está claramente alheia à realidade. Acha que foi tudo fácil para mim. Pablo e Virginia se encontraram quando ele buscava poder na política e ela estava atrás de poder econômico. A vida deles se cruzou nesse ponto, só que ela não passou de uma de suas inúmeras amantes. Eu era a esposa.
A versão sobre a morte de seu marido defendida por Virginia no livro que inspirou o filme Escobar — A Traição, protagonizado por Penélope Cruz, coloca a amante no centro dos acontecimentos. Ela teria sugerido aos investigadores colombianos que procuravam Escobar que buscassem a senhora e seus filhos na Alemanha, onde estavam escondidos. Escobar entraria em contato e eles rastreariam o sinal do telefone. Aconteceu assim mesmo? Não sei de nada disso. O que sei é que ele me ligou e, sim, acabou sendo rastreado.
“Um dia ele me abraçou, me beijou e tirou minha virgindade. Fiquei paralisada, senti dor. Depois veio a notícia: eu estava grávida. Pablo me levou para uma casa onde me fizeram um aborto. Não tive escolha”
Não parece uma armadilha muito básica para alguém tão esperto como Escobar? Acredito que, perseguido de todos os lados, Pablo tenha se suicidado. A polícia o queria vivo, sem dúvida. Por isso acertaram no joelho. E ele se deu um tiro atrás da orelha. Foi um médico que o acompanhou a vida inteira que o ensinou a achar o ponto certo para um tiro fatal. Vejo nessa decisão final uma tentativa de proteger a família. Nunca teríamos chance de uma vida normal daquele jeito.
A senhora se sente bem retratada nas séries e filmes sobre Escobar? Meu filho detectou mais de quarenta imprecisões na série Narcos. É muita ficção. Prefiro não ver. Acabam trazendo à tona a violência e o medo que moram dentro de mim.
A senhora conta no seu livro ter sido violentada por Escobar aos 13 anos. Como foi? Eu era uma menina e me encantei pelo homem mais velho que andava para cima e para baixo na motocicleta. Um dia ele me abraçou, me beijou e, sem que eu entendesse o que estava acontecendo, tirou minha virgindade. Não tinha maturidade para compreender aquilo. Fiquei paralisada, senti dor. Depois veio a notícia: eu estava grávida. Pablo não me perguntou nada. Só passou para me buscar e me levou para uma casa onde, viria a saber, me submeteriam a um aborto. Não fui consultada, não tive escolha.
Como a senhora definiria hoje Pablo Escobar? Ele era um sedutor, capaz de encantar as pessoas dando-lhes presentes, construindo campo de futebol, sendo boa-praça, e também um psicopata, pronto para tirar a vida dos outros em nome de poder, vingança, caprichos. O mais estranho é que só tive a real dimensão do personagem agora, à custa de muita análise e com a ajuda do tempo. Estou me divorciando de Pablo Escobar 25 anos depois de sua morte.
Publicado em VEJA de 8 de maio de 2019, edição nº 2633
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