A mesma coroa imperial incrustada com 2 868 diamantes e pesando mais de 1 quilo que representou seus longuíssimos setenta anos de reinado permaneceu pousada sobre o caixão de Elizabeth II nos dez dias de velório, pompa e comoção que se seguiram à morte da rainha de 96 anos. Soberana por acaso, que só se tornou princesa herdeira aos 10 anos porque o pai foi convocado a preencher o trono vazio pela abdicação do tio Edward VIII, Elizabeth, ao partir, era a única monarca britânica que gerações de súditos e não súditos haviam conhecido — calcula-se que 80% das pessoas que hoje habitam o planeta não tinham nascido quando ela foi coroada. Uma constante confiável e inabalável em um mundo de mudanças aceleradas, aprendeu com seus erros, foi angariando afeto e respeito e se tornou a singular garantia de sobrevida de uma monarquia à moda antiga, obsoleta em países modernos no século XXI.
Desfilando vestidos, casacos e chapéus de cores vivas com uma bolsa discreta (e vazia, segundo dizem) pendurada no braço e joias espetaculares de sua coleção particular, Elizabeth cumpriu, um a um, todos os seus deveres, sorridente e simpática na medida para pairar uns centímetros acima dos demais mortais, sem se desviar um milímetro do protocolo e do simbolismo de suas funções. Dois dias antes de morrer, passou o bastão da chefia do governo pela 15ª vez no Castelo de Balmoral, na Escócia, onde se recolheu nos últimos momentos — recebeu o primeiro-ministro que saía, Boris Johnson, e, horas depois, sua substituta, Liz Truss (aquela que durou menos no cargo do que uma cabeça de alface).
Reservada e impassível, personificou os valores tradicionais britânicos e se tornou notável pelas coisas que não fazia, em nome de um profundo senso de dever e autodisciplina até nos momentos mais impactantes. E impactos não faltaram na família real sob seu matriarcado: marido infiel, irmã alcoólatra, três dos quatro filhos divorciados, sendo justamente a separação do herdeiro Charles da princesa Diana a mais conturbada — episódio reeditado na atual temporada da série The Crown (para desgosto do Palácio de Buckingham). A morte trágica de Diana em um acidente de carro em Paris, no auge de seus 36 anos, abalou como nada antes a popularidade da rainha diante de súditos inconformados com sua indiferença. Bem a seu estilo, Elizabeth engoliu o orgulho e foi à TV ler um discurso de elogios à nora detestada. Mais recentemente, precisou lidar — a distância, sem expressões em público — com o afastamento de Harry e Meghan das funções reais e a ida deles para os Estados Unidos, onde falam poucas e boas dos parentes reais.
A monarquia britânica é a única de seu porte ainda em vigor na Europa. Embora não faltem reis e príncipes no continente, as outras famílias reais ou abriram mão de vários privilégios, modernizando de um lado, mas perdendo brilho de outro, ou seguem vivendo em pompa e circunstância, mas com muito menos fundação histórica — e fortuna infinitamente menor — do que a Casa de Windsor. Elizabeth morreu no auge da popularidade, a última memória de um Reino Unido altivo e relevante — uma imagem que tem muito pouco a ver com o país de hoje, mas que continuava a despertar nos britânicos um sentimento de unidade e orgulho. Com ela, vai-se uma era de dignidade e respeito à coroa que o herdeiro, Charles III, terá de suar (discretamente, sem que ninguém perceba) para reeditar.
Publicado em VEJA de 28 de dezembro de 2022, edição nº 2821