Teve curta duração a onda de simpatia dos britânicos com seu mal-ajambrado e despenteado primeiro-ministro Boris Johnson, despertada quando ele, em rápida sequência em abril, pegou Covid-19, foi hospitalizado e, mal recebeu alta, anunciou o nascimento do primeiro filho com a namorada, Carrie Symonds. No domingo 10, Johnson foi à TV para apresentar seu cronograma para a gradual retomada das atividades após o pico da epidemia — e tanto gaguejou, titubeou e criou celeuma que ele e os ministros passaram o resto da semana tentando desfazer o enrosco. Apesar da confusão, prevalece a expectativa de que, embora ainda esteja engolfado em estatísticas altíssimas de contaminação e mortes, o Reino Unido terá, em mais algumas semanas, condições de seguir os demais países europeus no caminho para a normalidade — pelo menos, a normalidade possível. Neste momento voltará à tona outro problemão dos britânicos, que andava meio adormecido: o Brexit.
Na soma dos solavancos provocados pela pandemia e pelo ainda indefinido mapa da concretização da saída da União Europeia, prevê-se para a economia do Reino Unido em 2020 um recuo maior do que o de todos os países do continente. No mesmo momento em que Johnson detalhava seu plano de retomada de atividades, abria-se em Bruxelas a terceira rodada de conversas (virtuais) para definir as regras do divórcio Reino Unido-União Europeia sancionado em 31 janeiro. As duas partes têm até o último dia do ano para destrinchar obstáculos e refazer os acordos que vão nortear as novas relações entre a ilha e o continente — um cronograma que já era complicado e a pandemia tornou virtualmente impossível. Boris Johnson tem até junho para pedir a prorrogação do prazo, mas diz e repete que jamais fará tal coisa. “Se os britânicos mantiverem essa postura, vamos ter uma jornada rumo ao desconhecido”, alertou Heiko Maas, ministro das Relações Exteriores da Alemanha.
O intrincado desenrolar do Brexit, que envolve questões de legislação trabalhista e ambiental, regras de comércio, definição de áreas de pesca marítima e a volátil situação da fronteira entre Irlanda, que faz parte da UE, e Irlanda do Norte, que não faz, deve transcorrer em ambiente dramático. O Banco da Inglaterra, o BC britânico, antecipa para este ano uma queda de 14% — sendo 30% no primeiro semestre, o maior tombo em 300 anos. A contração econômica britânica supera todos os recuos esperados na Europa, que não são poucos: 12% na Espanha, 8% na Itália e França, 6,3% na Alemanha. Segundo pesquisa da Resolution Foundation, que analisa o padrão de vida dos ingleses, cada família do reino ficará, em média, 9 000 libras (65 000 reais) mais pobre em 2020. Na previsão do Banco da Inglaterra, a economia só voltará a crescer, na melhor das hipóteses, em meados de 2021. “Sozinho e enfraquecido pela pandemia, o Reino Unido vai encarar um mundo bem mais hostil do que em 2016, quando um plebiscito aprovou o Brexit”, diz Fabian Zuleeg, analista do European Policy Centre, de Bruxelas. “Nesse meio-tempo, a China se tornou mais agressiva nas negociações e os Estados Unidos reforçaram sua postura isolacionista.”
Enquanto o problemão do Brexit ferve em fogo baixo, a disseminação do vírus segue acelerada entre os britânicos. Com 234 000 infectados e 33 000 mortes, até a quinta-feira 14, o Reino Unido tem o segundo maior total de mortos, perdendo apenas para os Estados Unidos (84 000). Mesmo assim, após oito semanas de confinamento, o governo decidiu iniciar o processo de saída, permitindo todo tipo de exercícios ao ar livre “em grupos de não mais que duas pessoas” e a volta ao trabalho na indústria e na construção civil “de quem não pode trabalhar em casa”, dando preferência aos deslocamentos a pé, de carro ou bicicleta.
Sem entender direito o alcance das medidas, uma multidão ganhou as ruas na segunda-feira 11, lotando parques e, é claro, o metrô de Londres, o principal meio de transporte da cidade — atropelando a intenção de Johnson de adiar o retorno real das atividades por mais umas duas semanas. O plano governamental classifica a epidemia em cinco níveis de alerta e coloca o país no quarto nível, quando a transmissão ainda é alta demais. A reabertura de escolas e lojas está prevista para 1º de junho e a de restaurantes, bares e hotéis, para julho. “Temos uma rota, temos um plano”, garantiu Johnson. Uma pesquisa no dia seguinte mostrou que apenas 30% entenderam qual é. E mais: no reino desunido, Escócia, Irlanda do Norte e País de Gales se recusaram a mexer no confinamento.
Publicado em VEJA de 20 de maio de 2020, edição nº 2687