Questão do aborto ajuda candidatos democratas nas eleições locais dos EUA
Referendos mostram que a discussão beneficia os nomes do partido em todas as eleições — menos na presidencial
Com todas as discussões voltadas para o embate Joe Biden versus Donald Trump na disputa pela Casa Branca no ano que vem, com vantagem (até agora) para o ex-presidente, os democratas tiveram a oportunidade de provar que, quando o assunto extrapola o duelo presidencial, suas chances de vitória ainda são significativas — especialmente se o assunto é aborto, um tema candente entre o eleitorado americano. Em uma terça-feira de eleições locais em diversos estados no início do mês, a invocação do direito ao aborto e outros temas relativos a liberdades individuais pintaram de azul (a cor do Partido Democrata) o placar final de votações para governador, prefeito, deputado estadual, conselhos municipais e outros cargos decididos nas urnas. No resultado mais esperado, no estado de Ohio, onde Trump venceu em 2016 e 2020, 57% dos eleitores disseram “sim” à inclusão de uma emenda à Constituição estadual que garante o direito dos cidadãos de “tomar e executar as próprias decisões reprodutivas” — e, de quebra, aprovaram a legalização da maconha.
No conservador Kentucky, onde uma lei estadual proíbe sumariamente o aborto, o governador democrata Andy Beshear foi reeleito fazendo do acesso à interrupção da gravidez um tema central da campanha: sua principal peça publicitária foi um comercial de TV com uma jovem que relata ter sido estuprada pelo padrasto aos 12 anos, critica o candidato republicano e enfatiza que “mulheres e meninas precisam de opções”. “Esta noite a democracia venceu e os trumpistas perderam”, comemorou Biden no X, ex-Twitter. A decisão do Partido Republicano de abraçar com vigor o movimento antiaborto já havia se mostrado equivocada na eleição de 2022, a chamada midterm, para renovar a Câmara e parte do Senado, quando o desempenho dos candidatos trumpistas ficou aquém do esperado.
Desde que a Suprema Corte dos Estados Unidos reverteu a decisão, em vigor há meio século, que garantia o direito constitucional à interrupção da gravidez e transferiu a questão para os estados, a população, majoritariamente favorável ao aborto, vem se mobilizando para manter o acesso viável. “A maioria dos eleitores não quer leis que restrinjam cuidados de saúde reprodutiva. Isso não acontece só em regiões vistas como democratas, o que sugere que o tema será crítico em 2024”, antecipa Nicole Huberfield, professora de direito da saúde da Universidade de Boston.
Faltando um ano para a eleição presidencial, o Partido Republicano, segundo analistas, está reconsiderando sua rejeição incondicional ao aborto — até porque, na corrida para a Casa Branca, conta com ampla vantagem. De acordo com pesquisa recente, se a eleição fosse hoje, Trump, mesmo sendo réu em quatro processos (ou até por causa disso), venceria em cinco de seis cruciais swing states — os estados que não têm predomínio democrata ou republicano —, nos quais perdeu para Biden em 2020. Além da idade, fator negativo mais citado, o atual presidente, que fará 80 anos no dia 20, pena para ganhar apoio em questões de economia e segurança nacional. Segundo análise da Bloomberg/Morning Consult, o americano médio gasta 730 dólares por mês a mais do que no ano passado, clara indicação de que, no bolso do eleitor, os danos causados pela inflação superam os ganhos em outras áreas da economia. “Para os americanos, pesa mais o dia de hoje que o dia de amanhã”, compara Caroline Bye, pesquisadora da Morning Consult. Questões como o direito ao aborto podem ajudar os candidatos democratas em geral, mas, para Joe Biden, a caixa de complicações segue abarrotada. E o tempo passa depressa.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2023, edição nº 2868