Nem duas horas depois de fechadas as urnas em El Salvador, o presidente Nayib Bukele cantou vitória na noite de domingo 4, dizendo-se reeleito com mais de 85% dos votos — projeção que se provaria correta. “É um recorde na história do mundo democrático”, bradou do balcão do Palácio Nacional a uma multidão de apoiadores. Aproveitou para celebrar o fato de o partido que fundou há apenas seis anos, o Novas Ideias, ter ocupado quase todas as cadeiras da Assembleia. “É a primeira vez que um partido único governa o país em um sistema totalmente democrático. A oposição inteira foi pulverizada”, tripudiou. Bukele, 42 anos, nada de braçada na onda de popularidade alcançada com a dizimação das gangues que faziam de El Salvador um dos lugares mais violentos do planeta. Conseguiu a façanha atropelando a tão citada democracia, com prisões indiscriminadas, Judiciário enfaixado e oposição reprimida — mas nada disso parece importar. A população, aliviada, o apoia integralmente, por mais ditatorial que soe, inflando o prestígio de um “modelo Bukele” em países da região.
Em dois anos, o governo de El Salvador prendeu mais de 74 000 pessoas — 8% da população masculina — , ação que virou peça de propaganda na forma de fotos e vídeos de pátios lotados de prisioneiros seminus e encheu as ruas de soldados. O resultado prático foi a queda da taxa de homicídios de 61 para 3 a cada 100 000 habitantes e o fim do domínio das maras, as gangues locais, que extorquiam comerciantes e esvaziavam as cidades (até tomar táxi era perigoso, por risco de sequestro). Bukele surgiu explorando a imagem de jovem, moderno e independente — “o ditador mais cool do mundo”, gaba-se — e colocando-se como alternativa aos dois partidos que se alternavam no poder, o esquerdista FMLN e o direitista Arena, sem controlar a violência. “Embora tenha algumas tendências da extrema direita, ele não está ligado à tradicional divisão do espectro político. É, acima de tudo, um populista”, afirma Manuel Meléndez-Sánchez, pesquisador da Universidade Harvard.
Em 2022, após um pico de criminalidade em que 87 pessoas foram assassinadas em dois dias, Bukele proclamou estado de exceção — que já renovou 22 vezes —, construiu a toque de caixa uma megaprisão de segurança máxima e autorizou a polícia a trancafiar qualquer suspeito de ligação com gangues. Quase nenhum preso foi julgado e, quando as audiências começarem — se começarem —, serão ações coletivas, com até 900 réus cada. “Ele eliminou os controles sobre seu poder para azeitar um draconiano sistema penal. Caminha para se tornar um ditador”, avalia Cynthia Arnson, especialista em política latino-americana do Wilson Center.
Em 2021, o Novas Ideias obteve maioria na Assembleia, abrindo espaço para Bukele demitir o procurador-geral, que investigava membros do governo por desvio de fundos, e aposentar à força um terço dos juízes do país, substituindo-os por aliados, inclusive na Suprema Corte. Os magistrados-parceiros mudaram regras eleitorais para sufocar partidos da oposição, deliberaram que ativistas e jornalistas sejam presos por “espalhar pânico” e, no ano passado, reinterpretaram a Constituição, que proíbe a reeleição, para permitir que ele concorresse. Em consequência da virada na segurança, o número de salvadorenhos que migravam ilegalmente para os Estados Unidos caiu mais de 30% no último ano, refletindo um otimismo com o futuro que nem a economia periclitante — inflação em alta, crescimento paralisado — parece afetar.
Ignorando as controvérsias, outros países na América Latina se mostram dispostos a copiar o modelo Bukele. No Equador, tomado por gangues de narcotraficantes, o presidente Daniel Noboa declarou estado de exceção e anunciou a construção de duas megaprisões. Rafael López Aliaga, prefeito de Lima, mencionou um “plano Bukele” ao solicitar a presença do Exército nas ruas. Honduras planeja erguer uma prisão exclusiva para gângsteres, enquanto a ministra da Segurança do governo Javier Milei, Patricia Bullrich, pretende visitar El Salvador para adaptar o modelo à Argentina. O Movimento Brasil Livre (MBL) mandou três integrantes para acompanhar a reeleição de Bukele e vai redigir um documento com medidas inspiradas por ele. Especialistas apontam para as características especiais de El Salvador, que tornam improvável a replicação da experiência: trata-se de um país do tamanho de Sergipe, com 6 milhões de habitantes e afastado do tráfico internacional de drogas, que dificulta a repressão à violência. “Às custas da redução de direitos, podem nem ter bons resultados nos índices de criminalidade”, diz Marie-Christine Doran, autora de A Face Oculta da Violência: Criminalizando a Democracia na América Latina. O presidente salvadorenho não esconde suas intenções: já declarou que a Constituição “atualmente” não permite um terceiro mandato e que cada geração tem “o direito de decidir suas próprias leis”. Gangues podem ser assustadoras, mas a história mostra que populistas todo-poderosos também não são flor que se cheire.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879