Por que a Fox News não levou a melhor no processo sobre fake news
O julgamento que iria expor as manobras da empresa não aconteceu. Rupert Murdoch pagou milhões para encerrar o caso — mas saiu com fama de mentiroso
Um tribunal de Justiça na pequena Wilmington, no estado de Delaware — ironicamente, a base eleitoral do presidente Joe Biden —, atraiu a atenção de toda a imprensa americana quando, na terça-feira 18, o juiz Eric Davis iniciou o julgamento do processo movido pela empresa canadense Dominion Voting Systems, que fabrica urnas eletrônicas, contra a rede de TV Fox News. Por um bom motivo: a Dominion acusava a Fox, com abundância de provas, de prejudicar sua reputação ao espalhar a falsa notícia de que suas urnas haviam sido manipuladas para fraudar o resultado da eleição que Trump perdeu em 2020. Aos 90 do segundo tempo, com os jurados já escolhidos, as duas partes anunciaram um acordo: a Dominion embolsou 787,5 milhões de dólares (cerca de 4 bilhões de reais), metade do que reivindicava a título de indenização, e retirou a denúncia.
Pode parecer que a Fox News levou a melhor, mas não. Primeiro, porque esse foi, disparado, o valor mais alto já empenhado para encerrar disputas do gênero, fato interpretado como uma admissão de culpa da emissora. Depois, porque nunca um esquema de fake news, ainda por cima engendrado na cúpula da rede a cabo mais vista do país, foi tão espantosamente escancarado. “É direito de todos discordar sobre questões políticas, mas, para que a democracia se sustente, precisamos preservar o compromisso com a verdade”, proclamou Justin Nelson, advogado da Dominion.
A Fox News faz parte da News Corp., conglomerado de comunicação do bilionário australiano Rupert Murdoch, de 92 anos, que também controla os jornais The Times, de Londres, e Wall Street Journal, de Nova York, entre outros. Refletindo a postura conservadora do dono, os veículos de Murdoch adotam uma agressiva linha editorial que abre espaço para teorias conspiratórias sem pé na realidade. A Fox, por exemplo, rejeita até hoje que as mudanças climáticas sejam obra da ação humana e, durante o mandato do ex-presidente Barack Obama, divulgou e repisou que ele não nasceu nos Estados Unidos. No caso das urnas eletrônicas, apresentadores-estrela da rede, como Tucker Carlson e Sean Hannity, insistiram durante semanas na tese da manipulação. A certa altura, Rudolph Giuliani, advogado de Trump, declarou de cara lavada na TV que a Dominion tinha sido fundada na Venezuela para favorecer o ex-presidente Hugo Chávez.
Na coleta de provas de que era tudo fake news da grossa, os advogados da Dominion obtiveram — e anexaram ao processo — dezenas de e-mails de Carlson, Hannity, outros âncoras e do próprio Murdoch, claramente duvidando das informações que divulgavam no ar e chamando Trump e aliados de “lunáticos”. Questionado em fevereiro pela Promotoria, Murdoch admitiu que seus “comentaristas” — termo que usou para tentar dissociar as mentiras da linha editorial da Fox — tinham “endossado” a balela da eleição fraudada mesmo sabendo ser mentira, com sua anuência, e que a motivação era manter a audiência e os anunciantes. “Este caso não é preto no branco, é verde”, disse, referindo-se à cor das notas de dólar.
Apesar das provas em seu poder, a Dominion tinha um processo difícil pela frente — daí, provavelmente, a opção pelo acordo. Por força da jurisprudência de uma ação vencida no passado pelo The New York Times, a empresa teria não só que provar a divulgação de lorotas a seu respeito, como evidenciar que isso foi feito deliberadamente — em termos legais, que houve “expressa má-fé”, um requisito feito para dificultar obstáculos à atuação da imprensa. “Reconhecemos que o tribunal considerou falsas algumas afirmações relativas à Dominion”, tentou contemporizar a Fox, em declaração após o anúncio do acordo. “A Fox confessou que espalhou mentiras sobre a Dominion”, rebateu o CEO da empresa, John Poulos. Encerrada essa batalha, Murdoch, o bilionário cuja trajetória serviu de inspiração para o drama Succession, da HBO, prepara-se agora para encarar nos próximos meses o processo que outra fabricante de urnas, a Smartmatic, move contra a Fox pelo mesmo motivo, pedindo indenização de 2,7 bilhões de dólares. É bom que a audiência se prepare para novos — e eletrizantes — capítulos.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2023, edição nº 2838