Exemplo de autocrata bem-sucedido e invejado por seus pares na expansão mundial da extrema direita durante a última década, o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, surgiu na política nos estertores da finada União Soviética. Na época, sua especialidade era desancar a Rússia, potência que subjugou seu país durante quarenta anos. Pois a Hungria do mesmo Orbán, em gritante virada de casaca, é agora o único país da Europa a apoiar Moscou na crise desencadeada pelo cerco militar russo à Ucrânia. A posição foi reforçada no efusivo encontro que manteve com o presidente Vladimir Putin, no início do mês. “No atual cenário, é uma traição Orbán visitar Moscou”, escreveram em comunicado representantes de partidos de oposição húngara.
A motivação do primeiro-ministro é, acima de tudo, pragmática: ideologias à parte, a Hungria depende do gás e de investimentos russos para suprir a maior parte da energia que consome e, com um inverno rigoroso em andamento e uma eleição difícil pela frente, a última coisa que o governo quer é ter de aumentar a conta do aquecimento dos húngaros por causa de trombadas com Putin. A conversa com o presidente russo durou cinco horas e, segundo Orbán, os dois trataram exclusivamente de assuntos econômicos. Sobre a crise russo-ucraniana, o primeiro-ministro, mais uma vez, pôs panos quentes: “Estou convencido de que as diferenças podem ser superadas”. Seu ministro das Relações Exteriores, Péter Szijjártó, foi mais direto ao rebater as críticas à mão estendida a Putin, com quem tanto a União Europeia quanto a Otan — ambas entidades das quais a Hungria faz parte — estão em confronto: “Não se aquece casas com declarações políticas”, afirmou.
Prometer aos eleitores que a conta de luz não vai aumentar se encaixa na toada populista que sustenta Orbán, figurão do ultranacionalismo e da defesa da “alma húngara” que manifesta repulsa aberta a imigrantes e aos movimentos LGBTQIA+ e endossa o que chama de “democracia iliberal” (também conhecida como ditadura). Por essas e outras, ele se tornou um espinho constante na garganta da União Europeia, esmerando-se em apoiar causas antidemocráticas frontalmente contrárias aos estatutos do bloco. Até agora, seus arroubos só renderam advertências e atrasos na liberação de recursos, enquanto a UE segue empurrando o problema com a barriga, tentando evitar punições mais desgastantes.
Uma derrota de seu partido, o Fidesz, nas urnas era impensável até pouco tempo atrás, mas a situação mudou. Depois de surfar uma sólida onda de popularidade desde que assumiu o governo, em 2010 — período em que aproveitou para esmagar opositores, fechar a imprensa livre, aparelhar as universidades e sufocar a independência do Judiciário —, ele enfrenta, a dois meses das eleições para o Parlamento, marcadas para 3 de abril, uma inédita vulnerabilidade. Pela primeira vez, a oposição superou diferenças e se uniu em uma coalizão de seis legendas, que alia esquerda, centro e direita e dá suporte a Péter Márki-Zay, um católico conservador pai de sete filhos.
Segundo as últimas pesquisas, Orbán tem 49% das intenções de voto e Márki-Zay, 45%. Acuado, o primeiro-ministro, com a justificativa de “proteger as famílias” da inflação, tirou do saco populista o congelamento de preços de produtos da cesta básica, um aumento das aposentadorias e do salário mínimo e cortes nos juros de financiamento imobiliário. Ao mesmo tempo, a imprensa, inteiramente controlada por simpatizantes do Fidesz, empreende ataques diários a Márki-Zay, acusado, entre outras coisas, de ser agente infiltrado da CIA. Insensíveis à ironia de um país liberado de décadas de jugo soviético estar mais próximo da Rússia do que da Europa e Estados Unidos, populistas mundo afora manifestam admiração por Orbán e sua guerra cultural contra as “elites corruptas”.
Entre os fãs está o ex-presidente americano Donald Trump, que apoia sua reeleição e é esperado em Budapeste para eventos de campanha, e Jair Bolsonaro, que irá ao país daqui a poucos dias, depois de uma visita oficial a Moscou. “Ao suprimir a oposição sem golpes de Estado ou violência, Orbán passou a encarnar a visão de estrategista e homem forte da política”, diz Kim Lane Scheppele, sociólogo de Princeton. Derrotá-lo não será tarefa fácil. A Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) alerta para a “sobreposição generalizada de recursos do Estado e do partido no poder”. Uma nova legislação eleitoral garante vitória ao Fidesz em distritos em que tenha apenas 30% dos votos, caso a oposição se divida. Além disso, Orbán e sua família gerenciam a distribuição de recursos do Orçamento — uma gestão eivada de irregularidades, de acordo com a agência antifraude europeia Olaf. Resta à União Europeia cruzar os dedos e aguardar o resultado de abril.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2022, edição nº 2776