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Pacote econômico de Milei não é tão radical, mas aplicá-lo será desafio

Medidas enfrentam o rosário do liberalismo ortodoxo com o intuito de reanimar o setor produtivo

Por Ernesto Neves 16 dez 2023, 08h00

Não será por falta de aviso. No discurso de posse proferido no domingo 10, no alto da escadaria do Congresso Nacional perante uma multidão de apoiadores, Javier Milei, o novo presidente da Argentina, antecipou que, sob seu bastão (adornado com a figura de seus cinco cachorros), a situação vai piorar antes de melhorar. “Não há dinheiro. A Argentina está em ruínas”, afirmou, repetindo a frase que virou bordão. Menos de 48 horas depois, o ministro da Economia, Luis Caputo, foi à TV detalhar um pacote de medidas para tirar o país da UTI, em clima de enorme ansiedade agravado pelo atraso de duas horas no discurso, que ele teve de regravar várias vezes. Nele, o ministro descortinou um receituário amargo, tido como necessário por especialistas: para pôr as contas do governo em ordem e tentar debelar a inflação de 150% ao ano, antecipou uma drástica redução de gastos públicos e uma agenda radical de privatizações, ambas ainda sem metas definidas, e a desvalorização do peso, essa sim, explicitada: 120%.

Este pacotaço inicial, considerado menos ácido do que era de se esperar de um anarcocapitalista, como Milei se define, desfia o rosário do liberalismo ortodoxo com o intuito de reanimar o setor produtivo. Segundo Caputo, a causa das sucessivas crises que golpeiam a Argentina desde o início do século XX é o desequilíbrio nas contas do governo — “a cultura política de gastar sempre mais do que se arrecada”, disse, com razão — e a missão do novo governo será erradicar o problema. Entre as dez providências anunciadas estão o corte de ministérios, de dezoito para nove, redução de verbas repassadas às províncias, suspensão de obras públicas, fim de subsídios para energia e transportes, liberação de importações e aumento de impostos. No câmbio oficial 1 dólar passou a ser cotado a 800 pesos, perto do valor no mercado paralelo. As medidas foram elogiadas pela diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, a quem Buenos Aires deve 44 bilhões de dólares e não tem como pagar.

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OFICIAL - Posando com chefes de Estado: retórica contida para angariar apoios (@casarosada/Facebook)

Parte do pacote de Milei depende de aprovação do Congresso e ela não será fácil: sua sigla, La Libertad Avanza, tem 39 das 257 cadeiras na Câmara e sete das 72 no Senado, enquanto a coalizão peronista Unión por la Patria, na oposição, elegeu 105 deputados e 33 senadores. O bloco também se destaca pela capacidade de convocar greves e protestos capazes de atormentar o cotidiano. Provavelmente para contornar esse pesadelo, Milei atenuou o discurso antissistema e se aproximou de nomes tradicionais da direita, como Patricia Bullrich, com quem disputou a Casa Rosada e que ganhou o Ministério da Segurança, e o ex-presidente Mauricio Macri, que indicou os principais nomes da gestão econômica, incluindo o ministro Caputo e o presidente do Banco Central, Santiago Bausili. Vem daí a varrida para debaixo do tapete, ao menos por hora, das promessas de transformar o dólar em moeda corrente (Caputo discorda) e de implodir o próprio BC (do qual Caputo já foi presidente). “A única maneira de se aprovar uma agenda tão ambiciosa é construir alianças no Congresso”, diz José Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário de Política Econômica do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

A herança deixada pelo ex-presidente Alberto Fernández é trágica (leia a coluna de Vilma Gryzinski). O déficit fiscal alcança 5,5% do PIB (no Brasil, 1,1%) e as reservas do BC estão negativas em 11 bilhões de dólares (as brasileiras são de 346 bilhões). Segundo pesquisa divulgada pela Universidade Católica da Argentina, 45% da população está abaixo da linha de pobreza, percentual que pode subir em 2024, já que as medidas anunciadas, no curto prazo, devem resultar em mais desemprego e inflação (precavendo-se, o novo governo ampliou a ajuda financeira a famílias com filhos). “O ajuste será muito duro, resta saber se a população vai aceitar seu preço”, diz Fabio Giambiagi, especialista em finanças públicas do FGV-­Ibre. A primeira manifestação da turma do contra está marcada para a semana que vem. É aconselhável que Milei — e a Argentina — se preparem.

Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2023, edição nº 2872

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