Pacote econômico de Milei não é tão radical, mas aplicá-lo será desafio
Medidas enfrentam o rosário do liberalismo ortodoxo com o intuito de reanimar o setor produtivo
Não será por falta de aviso. No discurso de posse proferido no domingo 10, no alto da escadaria do Congresso Nacional perante uma multidão de apoiadores, Javier Milei, o novo presidente da Argentina, antecipou que, sob seu bastão (adornado com a figura de seus cinco cachorros), a situação vai piorar antes de melhorar. “Não há dinheiro. A Argentina está em ruínas”, afirmou, repetindo a frase que virou bordão. Menos de 48 horas depois, o ministro da Economia, Luis Caputo, foi à TV detalhar um pacote de medidas para tirar o país da UTI, em clima de enorme ansiedade agravado pelo atraso de duas horas no discurso, que ele teve de regravar várias vezes. Nele, o ministro descortinou um receituário amargo, tido como necessário por especialistas: para pôr as contas do governo em ordem e tentar debelar a inflação de 150% ao ano, antecipou uma drástica redução de gastos públicos e uma agenda radical de privatizações, ambas ainda sem metas definidas, e a desvalorização do peso, essa sim, explicitada: 120%.
Este pacotaço inicial, considerado menos ácido do que era de se esperar de um anarcocapitalista, como Milei se define, desfia o rosário do liberalismo ortodoxo com o intuito de reanimar o setor produtivo. Segundo Caputo, a causa das sucessivas crises que golpeiam a Argentina desde o início do século XX é o desequilíbrio nas contas do governo — “a cultura política de gastar sempre mais do que se arrecada”, disse, com razão — e a missão do novo governo será erradicar o problema. Entre as dez providências anunciadas estão o corte de ministérios, de dezoito para nove, redução de verbas repassadas às províncias, suspensão de obras públicas, fim de subsídios para energia e transportes, liberação de importações e aumento de impostos. No câmbio oficial 1 dólar passou a ser cotado a 800 pesos, perto do valor no mercado paralelo. As medidas foram elogiadas pela diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, a quem Buenos Aires deve 44 bilhões de dólares e não tem como pagar.
Parte do pacote de Milei depende de aprovação do Congresso e ela não será fácil: sua sigla, La Libertad Avanza, tem 39 das 257 cadeiras na Câmara e sete das 72 no Senado, enquanto a coalizão peronista Unión por la Patria, na oposição, elegeu 105 deputados e 33 senadores. O bloco também se destaca pela capacidade de convocar greves e protestos capazes de atormentar o cotidiano. Provavelmente para contornar esse pesadelo, Milei atenuou o discurso antissistema e se aproximou de nomes tradicionais da direita, como Patricia Bullrich, com quem disputou a Casa Rosada e que ganhou o Ministério da Segurança, e o ex-presidente Mauricio Macri, que indicou os principais nomes da gestão econômica, incluindo o ministro Caputo e o presidente do Banco Central, Santiago Bausili. Vem daí a varrida para debaixo do tapete, ao menos por hora, das promessas de transformar o dólar em moeda corrente (Caputo discorda) e de implodir o próprio BC (do qual Caputo já foi presidente). “A única maneira de se aprovar uma agenda tão ambiciosa é construir alianças no Congresso”, diz José Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário de Política Econômica do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
A herança deixada pelo ex-presidente Alberto Fernández é trágica (leia a coluna de Vilma Gryzinski). O déficit fiscal alcança 5,5% do PIB (no Brasil, 1,1%) e as reservas do BC estão negativas em 11 bilhões de dólares (as brasileiras são de 346 bilhões). Segundo pesquisa divulgada pela Universidade Católica da Argentina, 45% da população está abaixo da linha de pobreza, percentual que pode subir em 2024, já que as medidas anunciadas, no curto prazo, devem resultar em mais desemprego e inflação (precavendo-se, o novo governo ampliou a ajuda financeira a famílias com filhos). “O ajuste será muito duro, resta saber se a população vai aceitar seu preço”, diz Fabio Giambiagi, especialista em finanças públicas do FGV-Ibre. A primeira manifestação da turma do contra está marcada para a semana que vem. É aconselhável que Milei — e a Argentina — se preparem.
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2023, edição nº 2872