Faz muito bem o Palácio de Buckingham em limitar a doses mínimas e espaçadas as entrevistas dos integrantes da família real britânica. Quando eles abrem a boca, o reino estremece. O desastre da vez veio na forma de uma “conversa franca e sem rodeios” do príncipe Andrew, 59 anos, o terceiro filho da rainha Elizabeth e, reza a lenda, o queridinho da mamãe. Assunto: sua amizade com o milionário americano Jeffrey Epstein, notório aliciador de meninas bem novinhas para maratonas de sexo em suas várias mansões. Sentado frente a frente com a jornalista Emily Maitlis, do programa Newsnight, da BBC, em um imponente salão do palácio, Andrew desfiou absurdos e desculpas de fazer corar até os fantasmas que rondam esse tipo de moradia. Não se expiou da relação com um criminoso, não convenceu ninguém de que não se aproveitou das regalias que ele oferecia e ainda demonstrou frieza total em relação às vítimas de Epstein. Saiu da entrevista pior do que entrou. Na quarta-feira 20, em um esforço de contenção de danos, informou que iria se afastar “por tempo indeterminado” do único trabalho que executa: aparecer em público. “Pedi à Sua Majestade, e ela aceitou”, disse. Provavelmente, soltou um suspiro de alívio.
O momento de maior estupefação na audiência ocorreu quando Andrew tentou manter distância da acusação de Virginia Roberts Giuffre, uma das adolescentes cooptadas por Epstein. Ela diz que, quando tinha 17 anos, recebeu ordens em três ocasiões para estender a Andrew “tudo o que fazia com Jeffrey”. A primeira teria sido em Londres, onde o casal foi a uma boate e passou a noite na casa de Ghislaine Maxwell, socialite londrina que, de acordo com denúncias, ajudava Epstein na eterna busca por adolescentes para seu harém. Andrew fez três reparos ao relato de Virginia, que consta do processo aberto em Nova York. Primeiro, não se recorda de alguma vez tê-la encontrado. Segundo, não podia ter “bebido e suado profusamente” na boate, como ela descreveu, porque não bebe e, em decorrência de um tiro que levou na Guerra das Malvinas (citado três vezes), parou de transpirar. Por último, na data mencionada, estava em casa, cuidando das filhas. Como lembra disso? Porque levou uma delas a uma festinha na Pizza Express, uma rede popular em Londres onde não pisaria em outra circunstância. Deu a entender que a foto em que aparece com o braço em volta de Virginia, na casa de Ghislaine, é montagem — “Em Londres, só saio de terno e gravata”. “Digo, categoricamente, que nada disso aconteceu”, proclamou.
Epstein morreu em uma cela de prisão em Nova York em agosto, de aparente suicídio, quando a Justiça se preparava para processá-lo por várias acusações de aliciamento de menores. Antes disso tinha sido julgado e condenado pelo mesmo crime na Flórida; ficou treze meses na cadeia, com mil mordomias, e foi solto em julho de 2010. Seis meses depois, Andrew passou quatro dias em sua casa em Nova York (onde o vaivém de adolescentes fora retomado). O que o príncipe foi fazer lá? Encerrar a amizade, disse na entrevista. “Pensei em conversar por telefone, mas achei que não era certo”, explicou, creditando o erro de julgamento a uma tendência a ser “exageradamente correto”. Emily rebateu: “Você se hospedou na mansão dele. Por quê? Por que ficar com um criminoso sexual condenado?”. Era o mais conveniente, respondeu, e que se recrimina por isso. Poucos meses após o tal rompimento de laços, a ex-mulher de Andrew, Sarah, ganhou 15 000 libras do desprendido milionário para quitar uma dívida.
Andrew nunca, jamais, estranhou o trânsito de garotas nas casas do amigo. “Para mim, eram empregadas”, explicou o príncipe, que, “sem querer parecer presunçoso”, está “acostumado a ter muitos funcionários em volta”. E não, não se arrepende da amizade com o predador serial. “As pessoas que conheci e as oportunidades que tive de aprender, proporcionadas por ele, foram muito úteis”, argumentou Andrew, que na época corria o mundo como “embaixador comercial” do Reino Unido. Em contrapartida, Epstein esteve em um aniversário do príncipe no Castelo de Windsor, nos 18 anos de sua filha Beatrice e em uma festa na propriedade real em Sandrigham.
Por causa da repercussão da entrevista, as entidades filantrópicas apoiadas pelo príncipe perderam patrocínios. A Universidade de Huddersfield, no Reino Unido, ameaça retirar o título honorífico que lhe concedeu. Há a possibilidade de que a Justiça de Nova York e até o FBI, que investiga a morte de Epstein, o chamem para depor. Depois das desastrosas entrevistas em que Diana revelou haver “três neste casamento”, Charles admitiu que sim, havia traído, e, mais recentemente, o príncipe Harry desancou a imprensa, agora foi Andrew, o duque de York, quem passou ridículo diante dos súditos. Merece ou não merece ficar de castigo?
Publicado em VEJA de 27 de novembro de 2019, edição nº 2662