Os desafios que a eleição de Milei impõe à relação Brasil-Argentina
Teme-se o efeito de sua eleição nos negócios entre os dois países
A esta altura, a turma que se arrepia com a possibilidade de um nome saído dos desvãos da política, sem experiência e sem travas, ganhar uma eleição presidencial já devia estar acostumada — mas não. Como aconteceu com Donald Trump nos Estados Unidos e com Jair Bolsonaro no Brasil, um desalentado “não pode ser” de um naco da opinião pública acompanhou a vitória na Argentina de Javier Milei, 53 anos, frenético disseminador de ideias pouco ou nada ortodoxas que até recentemente era motivo de piada. E que vitória: Milei derrotou o ministro da Economia, Sergio Massa — e por tabela o peronismo, força dominante há meio século, com breves interregnos —, com 55% dos votos, ou 14,5 milhões do total, um recorde. Em seu primeiro pronunciamento como presidente eleito, deixou de lado os socos no ar, a motosserra em riste e os ataques pessoais e optou por suavizar o discurso: “Tenho compromisso com a democracia, o comércio livre e a paz”, afirmou.
A mudança de tom, que já era visível nas semanas que precederam o segundo turno, é recebida com alta dose de desconfiança por quem passou pela máquina de moer carne do candidato em estado raivoso, aí incluído em lugar de destaque o governo brasileiro, para a apreensão dos empresários que mantêm longa e lucrativa relação comercial com o país vizinho. Em um esforço diplomático como havia tempos não se via em relação à Argentina, o Itamaraty tenta interpretar os sinais para entender qual Milei governará o país — se El Loco, apelido dos tempos de colégio, ou se a versão moderada que agora incorpora.
Ao longo da disputa eleitoral, Milei, economista de formação, discípulo de corpo e alma de um certo anarcocapitalismo com opção preferencial por posições caras à extrema direita, usou sua língua afiada para desancar Lula, a quem chamou de “comunista” e “corrupto” em entrevistas. Os ataques continham, além dos ingredientes da cartilha ideológica que opõe direita e esquerda no continente, um tempero de vingança: Milei não engole o fato de marqueteiros ligados ao PT terem se juntado à campanha de Massa, empregando técnicas de propaganda nas redes sociais semelhantes às utilizadas na peleja contra Bolsonaro no ano passado. No novo ambiente de moderação, as farpas migraram para as entrelinhas. Lula escreveu uma mensagem reconhecendo a vitória do novo mandatário sem citar seu nome. Milei, por seu lado, fez questão de convidar Jair Bolsonaro para a posse, em 10 de dezembro, durante uma celebratória ligação por vídeo na qual o ex-presidente derramou-se em elogios ao argentino: “Você representa muito para nós”, afirmou Bolsonaro.
Já antes da posse, Milei dirá a que veio, ao menos do ponto de vista de imagem. Ele marcou duas viagens nas três semanas que antecedem à cerimônia. Na primeira, aos Estados Unidos, se reunirá com o ex-presidente Donald Trump, com quem tem fortes laços de afinidade. “O mundo inteiro acompanhou, estou orgulhoso por você”, declarou Trump em sua rede social. Depois, em Israel, pretende reforçar uma alardeada união espiritual com o judaísmo — ele relata que estuda a Torá e já cogitou se converter – em um encontro com o assoberbado primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. Apesar da falta de empatia até o momento, o Itamaraty tem trabalhado para garantir que as relações com a Argentina não degringolem. “O Brasil está fazendo todos os esforços para iniciar o trabalho com o novo governo nos melhores termos”, disse a VEJA o embaixador brasileiro em Buenos Aires, Julio Bitelli. “Estamos esperando gestos da mesma direção.” Depois de muita pressão, o presidente eleito emitiu um aceno a Lula, mas pelos jornais: “Se quiser vir, será bem-vindo”.
A preocupação maior de Brasília é a possibilidade de a Argentina sair do Mercosul, “uma união aduaneira defeituosa” que, segundo Milei, deveria ser extinta. Para piorar, a vitória do candidato ocorre às vésperas da assinatura de um acordo comercial do bloco com a União Europeia, após quase duas décadas de articulação, que elimina tarifas de importação sobre 92% dos produtos sul-americanos e 72% das mercadorias vindas da Europa. Além de intensificar o comércio, o pacto prevê investimentos europeus nos países-membros que, juntos, acrescentariam até 12 bilhões de dólares ao PIB regional. Com receio de que a saída da Argentina destrua anos e anos de esforços diplomáticos, Lula ligou para a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, pedindo que o pacto seja firmado na cúpula do Mercosul no Rio de Janeiro em 7 de dezembro — três dias antes da posse de Milei.
No entorno do novo presidente, a chance de saída do bloco é tida como remota. Defensor do comércio ultralivre, Milei penderia mais a promover mudanças nas regras atuais, o que não é totalmente malvisto pelo Planalto. A economista Diana Mondino, a futura ministra das Relações Exteriores, reuniu-se dias depois da vitória com o embaixador argentino no Brasil, o peronista Daniel Scioli, e ouviu argumentos favoráveis à permanência. O próprio Milei cogita fazer a primeira viagem oficial ao Paraguai, para se encontrar com o presidente Santiago Peña, que é de direita e também defende uma mudança, ainda a ser determinada. “Já vimos esse filme no governo Bolsonaro”, diz Leonardo Trevisan, professor de relações internacionais da ESPM. “Paulo Guedes era contra o Mercosul, mas o empresariado brasileiro não permitiu que o bloco se desmantelasse. O mesmo deve acontecer na Argentina.”
Ao longo de mais de trinta anos do acordo de cooperação, os dois países alcançaram um nível de interdependência comercial. O Brasil é o maior parceiro da Argentina, que por sua vez é o terceiro país com o qual os brasileiros mais fazem negócios. Grandes exportadoras de commodities agrícolas, as duas nações trocam principalmente produtos de alto valor agregado, como veículos, autopeças e máquinas agrícolas, em uma balança comercial que, em 2023, chegará a 25 bilhões de dólares (veja o quadro). No atual cenário de incerteza, as montadoras que operam dos dois lados da fronteira convocaram seus executivos para traçar cenários para o futuro. “É urgente esperar”, recomenda Marcos Azambuja, ex-embaixador brasileiro em Buenos Aires. “Tenho a impressão de que nem Milei sabe como será seu governo.”
As maiores dúvidas não estão na política externa, mas na economia. No profundo buraco em que a Argentina se enfiou, a inflação acumulada nos últimos doze meses é de 142%, com expectativa de bater em 200% no início do próximo ano. O dólar passou de 1 000 pesos e a taxa de juros do Banco Central atingiu 133% ao ano. Mais de 40% da população vive abaixo da linha de pobreza. Para complicar ainda mais, o país deve 44 bilhões de dólares ao FMI e não tem reservas para honrar o empréstimo. Em seu primeiro pronunciamento, Milei avisou que o remédio da sua receita será amargo e que “não haverá espaços para gradualismo”. Até o momento, contudo, não detalhou como cumprirá a promessa de cortar 15% dos gastos do governo e acabar com subsídios nas tarifas públicas. “Milei se elegeu vendendo magia, mas agora tem o desafio de realizar as aspirações do povo”, diz Eduardo Amadeo, ex-deputado que já comandou diversos organismos econômicos argentinos. Pior situação só se viu em 2001, quando o governo confiscou as contas da população, levando a uma onda de protestos nas portas dos bancos.
A promessa de fechar o Banco Central para cessar a emissão de moeda segue de pé, mas, desde que foi eleito, Milei aboliu do vocabulário a palavra “dolarização”. No lugar, sugere a convivência da moeda americana com o peso até que a população faça a troca naturalmente. “Não é proposta factível”, diz Marina Dal Poggetto, professora de economia da Universidade Austral. “Além disso, não há dólares disponíveis no país.”
Propostas econômicas alternativas têm sido levadas à nova equipe pelo PRO, partido de centro-direita do ex-presidente Mauricio Macri, que foi derrotado nas urnas e negocia apoio ao próximo governo. Até agora, porém, as conversas andam frias — o único consenso é a bem-vinda privatização de petrolíferas estatais, entre elas a YPF, espécie de joia da coroa. Contabilizados os votos, o partido de Milei, A Liberdade Avança, soma apenas 38 dos 257 assentos na Câmara dos Deputados e sete dos 72 no Senado. Para aprovar qualquer lei relacionada ao seu ambicioso e polêmico projeto, Milei precisa do apoio de, no mínimo, metade das cadeiras mais uma. “Ele depende da casta que tanto criticou”, aponta o cientista político Eduardo Sartelli. Completa Lara Goyburu, professora de política da Universidade de Buenos Aires: “Sem estrutura partidária ou territorial, o governo Milei é uma grande incógnita.”
A versão mais sensata que exibe não conseguiu apagar da memória dos políticos a quem agora afaga as excentricidades da sua ruidosa vida pessoal: foi cover de Mick Jagger à frente da banda de rock Everest, destemido goleiro do Chacarita Juniors, time da periferia de Buenos Aires, e se aconselha com Conan, mastim inglês já morto de quem clonou os cinco cachorros com quem vive atualmente. Para o bem da Argentina e do Brasil, tomara que as tais conversas com o além ajudem a incutir uma boa dose de bom senso no novo presidente. A Argentina não pode afundar.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2023, edição nº 2869