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O silêncio incômodo do governo Lula sobre o regime de Ortega

Enquanto o sistema cruel da Nicarágua bane, prende e fuzila quem discorda dele, o Brasil prefere não assinar declaração de repúdio ao país na ONU

Por Ernesto Neves, Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 11h15 - Publicado em 18 mar 2023, 08h00

Ícone da esquerda da América Latina nos anos 1970, Daniel Ortega capitaneou a revolução que encerrou quase meio século da tenebrosa ditadura comandada por Anastasio Somoza na Nicarágua. Fincou-se no poder até 1990, ano em que perdeu as eleições e recebeu a visita de Lula, com quem já havia se encontrado dez anos antes, no Congresso da Frente Sandinista, e compartilhava ideias de cunho socialista. Ortega retornou ao poder em 2007 e de lá nunca mais saiu, intervindo com mãos cada vez mais pesadas nas instituições e cassando opositores com a brutalidade típica de regimes autoritários como o que combateu. A crueldade do sistema que implantou nunca atingiu níveis tão desumanos, com prisões e fuzilamentos — um cenário de afronta aos mais elementares pilares democráticos que acaba de motivar uma declaração conjunta de repúdio apresentada no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, endossada por 55 países. O Brasil não assinou, e de Lula não se ouviu uma única palavra. Até o papa Francisco, sob holofotes globais, classificou o país de Ortega como “ditadura grosseira”.

A postura brasileira destoou ruidosamente da de nações, hoje também governadas pela esquerda, como Chile e Colômbia, que aderiram ao documento da ONU. Na pressão, o embaixador do Brasil na organização, Tovar da Silva Nunes, apareceu em nome do Brasil externando pela primeira vez “preocupação com os direitos humanos” nesse naco da América Central encravado entre o Oceano Pacífico e o Caribe e afirmando que o país está enfim aberto a receber dissidentes banidos por Ortega. Tarde demais. A iniciativa não tem o mesmo peso de uma condenação formal e não apaga o incômodo em torno do ensurdecedor silêncio de Lula. “Existe uma diferença geracional entre a nova esquerda latino-­americana, como a chilena e a colombiana, e a do PT, que ainda está ancorada na lógica da Guerra Fria e tem aversão ao que vê como interferência externa”, observa o analista de risco político Leandro Lima, da consultoria Control Risks.

É a mesma velha equação que faz com que Lula não emita opinião sobre os descalabros de Nicolás Maduro na Venezuela nem sobre os flagrantes ataques às liberdades individuais em Cuba desde os tempos do amigo Fidel Castro — posição de forte cunho ideológico que só agrada às alas mais radicais do PT. Pelo ângulo da diplomacia, uma argumentação que circula nas altas-rodas do Itamaraty é a de que o pragmatismo não deve ser posto de lado — a Venezuela, por exemplo, é dona de vastas reservas de petróleo (tristemente minguadas na era chavista) e quase mais nada produz, daí ser um potencial celeiro para exportações, além de uma peça no quebra-cabeças geopolítico que pode aproximar Brasil e Estados Unidos. Desde que voltou ao Planalto, Lula iniciou o processo de reabertura da embaixada brasileira em Caracas e, na semana passada, discretamente enviou para lá o chefe da Assessoria Especial da Presidência da República, Celso Amorim. Negócios à parte, nada impediria que fizesse um manifesto pró-democracia, algo que anda em falta há tempos no país vizinho. “A nova esquerda da América Latina está mais bem resolvida que o Brasil na balança que equilibra a defesa dos direitos humanos e o princípio da não intervenção das nações”, enfatiza Leandro Lima.

'COMPAÑEROS' - O aperto de mão de Amorim e Maduro: os amigos não erram
COMPAÑEROS - O aperto de mão de Amorim e Maduro: os amigos não erram (Prensa Miraflores/EFE)

Enquanto o Brasil se mantém quieto, ao longo da última semana mais de 300 nicaraguenses tiveram seus registros civis apagados e os bens confiscados a mando de Ortega e de sua mulher, a vice-presidente Rosario Murillo, figura-chave na repressora engrenagem. É como se essas pessoas não existissem, horror que veio logo após outro arbítrio imposto a dissidentes — a supressão de sua nacionalidade, o que os torna apátridas. Eles estavam presos num centro de detenção de Manágua e foram enviados ao exterior depois de longas tratativas mediadas pelos Estados Unidos.

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Ortega fez da Nicarágua seu feudo — sua família está ligada a pelo menos 22 empresas, incluindo petrolíferas e imobiliárias. Oito dos nove filhos lideram pastas do governo (a única excluída vive no exterior após denunciar ter sido abusada sexualmente pelo pai aos 9 anos). O embrutecimento do regime se acelerou a partir de 2018, depois de uma onda de protestos que levou a centenas de mortes e à extinção de 1 000 organizações de direitos civis, em paralelo à perseguição à imprensa.

Nas eleições de 2022, consideradas fictícias por observadores internacionais, o partido sandinista venceu em todos os 153 municípios do país, ao mesmo tempo que líderes da oposição eram trancafiados em prisões. Foi aí que Estados Unidos e União Europeia baixaram sanções sobre vários membros da família Ortega e aliados. “Para eles, vale tudo pelo poder, mesmo que fiquem tão isolados internacionalmente quanto a Coreia do Norte”, compara Benjamin Gedan, do Wilson Center, de Washington. Em resposta à crítica do papa, Ortega ordenou, na segunda-feira 13, o encerramento das atividades da Embaixada do Vaticano em Manágua e da representação diplomática em Roma. Em rara ocasião em que se pronunciou sobre a Nicarágua, em entrevista ao jornal El País, Lula deixou no ar uma pergunta: “Por que Angela Merkel pode ficar dezesseis anos no poder e Ortega não?”. A resposta está na brutal afronta aos direitos mais básicos da população que ele governa.

Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833

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