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O Japão e as baleias

A caça controlada desses mamíferos na Antártica é uma prática sustentável e deve ser vista e respeitada como uma questão cultural

Por Keiko Yagi*
Atualizado em 4 jun 2024, 16h59 - Publicado em 28 set 2018, 08h00
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  • Em 2013, a Austrália acionou a Corte Internacional de Justiça da ONU contra o Japão para proibir o país de realizar a caça de baleias na Antártica. No ano seguinte, o Japão foi condenado por ter violado o artigo 8º da Convenção Internacional para a Regulamentação da Caça de Baleias, de 1946, que permite a captura desses mamíferos apenas para fins científicos. Esse acontecimento foi amplamente divulgado pela imprensa, tanto no exterior quanto em território japonês, e foi por causa dele que resolvi iniciar a minha pesquisa. Queria entender a razão dessa medida internacionalmente retratada como uma vitória sobre a “caça ilegal de baleias”.

    Pouco antes, em 2009, os Estados Unidos haviam lançado um documentário que retrata a pesca desses animais na costa japonesa como algo feito às escondidas, ligado à máfia. O filme ganhou o Oscar de melhor documentário em 2010, mas para qualquer japonês que assista a ele os erros e as mentiras são nítidos. Por causa do filme, muita gente passou a acreditar, por exemplo, que baleias e golfinhos podem ser extintos pela pesca japonesa e que a presença de mercúrio na carne desses animais ameaça a saúde dos consumidores. Isso é falso.

    Assim, decidi que iniciaria a minha pesquisa a partir dos fatos relatados ou omitidos no documentário de Ric O’ Barry, ativista e protagonista do filme, que se chama The Cove (A Enseada). O título faz referência ao local onde os caçadores apanhariam os golfinhos, daí o fato de eu ter intitulado o meu filme Behind the Cove (Por Trás da Enseada).

    A maior parte do filme de O’Barry se passa em Taiji, um pequeno vilarejo da costa oeste japonesa que por muito tempo viveu da caça de baleias. Fui para lá. Fiquei surpresa com o fato de uma cidade com pouco mais de 3 000 habitantes abrigar um grande número de ativistas anticaça. Tanto Taiji quanto a atividade baleeira, parte da cultura dos japoneses, ganharam holofotes — e muitas críticas — após o lançamento do documentário. Tive problemas com os ativistas que estavam no local. Eles foram bastante agressivos com a nossa equipe e o site da produtora chegou a ser hackeado. Muitos habitantes de Taiji, assustados, recusaram-se a dar depoimentos para o meu filme, por temor de represálias. A sensação de medo é sentida pelos japoneses de forma geral. O receio da repercussão de associar-se a prática tão execrada por alguns países também chegou às empresas. Muitas delas se recusaram a patrocinar a distribuição do documentário. Eu me empenhei em fazer um filme completo e verdadeiro. Para isso, pesquisei e estudei muito.

    “Muita gente passou a acreditar que as baleias podem ser extintas pela pesca japonesa. Isso é falso”

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    Acredito que a caça às baleias é uma questão que deve ser debatida. Para isso, é preciso saber que, primeiro, a quantidade desses animais que o governo japonês autoriza pescar hoje é restrita — 333 por ano. Depois da II Guerra Mundial, quando o país, devastado, tinha na carne de baleia sua principal fonte de proteína, as expedições na Antártica chegavam a capturar milhares desses mamíferos.

    A geração dos que agora têm acima de 50 anos comia essa proteína na merenda escolar. Para essa parte da população, a carne de baleia tem caráter de nostalgia, de volta à infância. A carne de baleia é muito nutritiva e proteica, contém baixo colesterol, é rica em proteínas e pode ajudar no combate a doenças neurológicas. Mas, atualmente, a maior parte dos japoneses não a consome no cotidiano.

    Como só o que chega ao mercado é a carne que sobra dos projetos de pesquisa científica, o produto tornou-se algo muito caro e difícil de encontrar. A frequência com que aparece no prato das crianças hoje é de uma vez por ano, no máximo — mais como uma forma de relembrar as tradições do passado. Mesmo em Taiji, o local onde a maior parte da caça é feita, as crianças consomem carne de baleia não mais que uma vez por mês. E, ao contrário do que sugere o documentário americano premiado com o Oscar, nunca houve um único caso de contaminação por mercúrio por parte de estudantes que ingeriram o alimento.

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    Os poucos mais de 300 animais cuja caça o governo japonês autoriza anualmente representam uma quantidade muito pequena se comparados ao número de baleias e golfinhos mortos pelos sonares da Marinha americana. Esses aparelhos fazem com que os animais se desorientem, nadem até a costa e lá encalhem. Há evidências também de que muitos morrem por hemorragia, vitimados pelo estouro dos tímpanos, sensíveis ao som agudo dos sonares.

    Outro ponto importante é que o argumento do risco de extinção desses cetáceos pela pesca é fruto da falta de conhecimento das pessoas. Há uma mentalidade coletiva de que outros animais abatidos, como o gado, são criados em fazendas, se reproduzem e, portanto, nunca serão extintos, enquanto as baleias vítimas da caça deixarão de existir muito em breve. Mas uma espécie como a minke-antár­tica, pescada pelos japoneses, não está em extinção. De acordo com a International Whaling Commission, sua população varia de 460 000 a 690 000 indivíduos hoje. As pesquisas conduzidas pelo Japão mostram que a população de baleias da Antártica é saudável e pode ser pescada de maneira sustentável.

    A reflexão que Behind the Cove tenta promover é tanto sobre a questão da caça de baleias quanto sobre o preconceito contra o Japão. Esse sentimento vem do fato de que, por exemplo, ONGs e entidades que fazem campanhas para conseguir fundos para os seus protestos anticaça usam a imagem da bandeira japonesa, embora outros países, como a Noruega e a Islândia, também cacem baleias. Por que esse ataque é direcionado ao Japão? (Em 1972, a Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente Humano estabeleceu uma moratória global — ainda em vigor — para a caça de cetáceos com fins comerciais, mas tanto a Noruega quanto a Islândia aceitaram a resolução “com reservas”.)

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    Sob outro aspecto, também parece injusto que a criação e o consumo de gado sejam práticas longe de ser tão abominadas quanto a caça às baleias, embora gerem desmatamento, grande emissão de gás carbônico e poluição dos recursos hídricos. Se, por meio do meu filme, as pessoas puderem ter acesso a um ponto de vista diferente e pensar, por exemplo, que há outras ações bem mais danosas para o planeta que a caça de baleias e que a condenação dessa atividade no Japão pode ser um desrespeito a uma questão cultural importante para o país, terei certeza de que cumpri o meu papel.

    * Keiko Yagi é documentarista japonesa e diretora do filme Behind the Cove

    Publicado em VEJA de 3 de outubro de 2018, edição nº 2602

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