À medida que um punhado de países começa a tatear o mundo pós-pandemia, crescem as especulações sobre as mudanças que vêm por aí. A China, a primeira nação a entrar e a sair da quarentena, acaba de dar uma amostra: aprovou na sessão anual do Congresso Nacional do Povo, iniciada na sexta-feira 22, novas regras para a segurança nacional que significam, na prática, um aperto sem precedentes no sistema de semiautonomia que vigora em Hong Kong. Irredutíveis, os jovens que praticamente paralisaram a ilha durante boa parte de 2019 em manifestações contra a mão pesada de Pequim voltaram às ruas e foram contidos pela polícia com bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta, mais de 400 prisões e alto grau de truculência. “Forças anti-China estão promovendo abertamente a independência de Hong Kong. Precisamos de uma legislação vigorosa para prevenir, conter e punir essas forças”, proclamou Wang Chen, relator da proposta, sob aplausos entusiasmados dos 3 000 delegados que tinham o rosto coberto por máscara (a elite dispensou o uso da proteção sanitária).
O governo do presidente Xi Jiping escolheu a dedo o momento do anúncio. Em Hong Kong, agiu antes de a população recuperar o ímpeto rebelde que o isolamento social arrefeceu — de fato, a retomada dos protestos, logo depois do anúncio e nos dias que se seguiram, não arrastou a mesma multidão de antes, embora isso ainda possa acontecer. No cenário mundial, marcou a posição de força da China — “O grande rejuvenescimento da nação chinesa”, nas palavras do próprio Xi —, enquanto outras nações, inclusive os Estados Unidos, continuam sob o efeito do solavanco do coronavírus.
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Clique e AssineAs novas medidas, que devem entrar em vigor em setembro, dão ao governo de Pequim o poder de reagir a “qualquer ato de traição, sedição, rebelião e subversão”, bem como a manifestações de ingerência estrangeira, contra o Estado chinês, independentemente das leis próprias que regem suas sete regiões autônomas ou semiautônomas. Destas, a mais resistente aos decretos de Pequim é justamente Hong Kong, que conta com uma mini-Constituição, um Judiciário relativamente independente e garantia, cada vez mais contestada, de manifestação popular. “A lei de segurança nacional permitirá também que viajantes e estrangeiros sejam presos”, prenunciou Joshua Wong, um dos líderes do movimento pró-democracia. Com maior margem de ação, o governo chinês poderá ainda ampliar a estrutura de seus serviços de inteligência e segurança na ilha, até agora discretos, e pôr na linha de frente os 10 000 soldados do Exército Vermelho lá estacionados. “Temos a confiança e a capacidade de salvaguardar a soberania nacional, a segurança e o desenvolvimento”, proclamou, após os protestos, o general Daoxiang, comandante da tropa.
Depois de marcar presença no Congresso do Povo, a chefe do Executivo de Hong Kong, Carrie Lam, fiel aliada de Pequim, explicou aos cidadãos da ilha que eles não tinham que se preocupar com as novas medidas, as quais “visam apenas a um punhado de criminosos e protegem a maioria, que ama a paz”. Como sempre, não convenceu ninguém. “Essa mudança pode ser o fim das liberdades cívicas que os cidadãos desfrutam”, diz Linda Li, analista política da Universidade da Cidade de Hong Kong.
Desde que o Reino Unido devolveu a ilha à soberania chinesa, em 1997, Hong Kong usufrui o status de “região administrativa especial”, previsto para durar até 2047. Mas a ascensão de Xi, em 2013, marcou o início do aperto contra as medidas liberais — e, com ele, o começo das manifestações populares. Cada embate entre os dois lados sacode as estruturas das empresas estrangeiras e do mercado financeiro, que, sob um regime especial mais livre, fazem de Hong Kong um corredor por onde a economia estatal chinesa escoa e recebe insumos — fator imprescindível para a recuperação da China do sufoco da pandemia (no mesmo congresso, o primeiro-ministro Li Keqiang informou que o país, pela primeira vez em 26 anos, deixará de projetar uma meta anual de crescimento). “Xi Jinping não vai permitir de forma alguma que uma democracia se instale em Hong Kong e rompa o elo chinês com o Ocidente”, afirma Roberto Dumas, especialista em economia chinesa do Ibmec.
O anúncio das novas medidas de segurança fez com que as bolsas da Ásia e do Pacífico fechassem em baixa generalizada. Nos Estados Unidos, o secretário de Estado, Mike Pompeo, comunicou ao Congresso que o governo deixará de considerar Hong Kong um território autônomo, o que abre espaço para sanções econômicas contra a ilha. “Está claro que a China está moldando Hong Kong à sua própria feição”, criticou Pompeo. A questão será tema da próxima reunião de líderes do G7, marcada inicialmente para o fim de junho, que terá como anfitrião o presidente Donald Trump, empenhado em um jogo de “vamos ver quem cede primeiro” com Xi em questões tarifárias e de tecnologia, entre outros movimentos no xadrez pelo protagonismo mundial. O mundo pós-pandemia promete.
Publicado em VEJA de 3 de junho de 2020, edição nº 2689