Erguida sobre as ruínas de um templo pagão para se tornar um poderoso símbolo da cristandade no coração de Paris, a Catedral de Notre-Dame resistiu ao longo dos séculos a sacolejos da história como guerras, revoluções (logo a Francesa) e, segundo estudos arqueológicos, até incêndios. Pois eis que em 15 de abril de 2019 ela começou a arder novamente em chamas, promovendo a quem assistiu à cena da igreja engolfada pelo fogo — in loco, de frente para a Île de la Cité, onde ela fica, ou mesmo pela TV — um espetáculo de terror. Em momento dos mais dramáticos, a torre batizada de “A Flecha” tombou. Parecia que a humanidade perderia para sempre aquele cartão-postal da arquitetura gótica, o mais visitado em uma cidade repleta de concorrentes de peso, como a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo, mas a catedral sobreviveu a mais essa, graças a um bem engendrado plano para emergências.
É verdade que até hoje, passados oito meses, as estruturas da Notre-Dame revelam alguma instabilidade, o que precisa ser corrigido antes do restauro propriamente dito, com início previsto para 2021. Os engenheiros ainda estudam como vão mexer nas pilastras medievais. Outro obstáculo para o princípio dos trabalhos são os elevados índices tóxicos de chumbo que impregnam o ar e inviabilizam a presença de operários. A promotoria francesa segue investigando o caso — uma falha elétrica simples, talvez ligada à obra pela qual o prédio vinha passando, é vista como a principal hipótese para a tragédia. Dinheiro, porém, não será problema para recuperar o telhado destruído e o belo interior, atualmente tomado por andaimes e escombros: em dois dias, as doações para refazer o que foi destruído cravaram o equivalente a 3,8 bilhões de reais. O presidente Emmanuel Macron chegou a afirmar que a igreja estaria nova em folha em 2024, a tempo da Olimpíada parisiense, data que já se sabe não ser realista. Certo é que, quando reabrir as portas, a Notre-Dame terá a mostrar ao público suas relíquias preservadas e os magníficos vitrais, felizmente intactos, que banham a catedral de luz.
Publicado em VEJA de 1º de janeiro de 2020, edição nº 2667