Morte de Navalny ecoa no mundo, e soa como alívio para Putin
Prestes a se reeleger, ele se beneficia também de ganhos na frente de batalha e de fôlego na economia
Na semana em que a invasão da Ucrânia completa dois anos, o presidente russo, Vladimir Putin, não tem do que reclamar. Seu mais conhecido e influente opositor, o advogado Alexei Navalny, morreu na cadeia em circunstâncias que seriam misteriosas, não fosse a certeza geral de que houve interferência da mão pesada do Kremlin. A resistência militar ucraniana, assolada por estratégias equivocadas e pelo fechamento da torneira da ajuda americana, parece estar desmoronando. A economia, por sua vez, que deveria dar sinais de estrangulamento devido à chuva de sanções dos Estados Unidos e da Europa, encontrou outros parceiros, deu a volta por cima e voltou a crescer, o que contribui tanto para financiar a caríssima “operação militar” na Ucrânia quanto para atenuar qualquer descontentamento da população. Faltando poucos dias para uma eleição presidencial praticamente ganha, entre 15 e 17 de março, o seriíssimo Putin, não por acaso, vem esboçando, em entrevistas e encontros cuidadosamente orquestrados em fábricas e sedes de associações, mais sorrisos do que nunca.
A morte de Navalny, 47 anos, anunciada na sexta-feira 16, foi uma marretada que ecoou no mundo todo. Implacável divulgador das regalias e da corrupção na cúpula governante, ele começou a aparecer ao publicar na internet um vídeo do palácio secreto de 190 000 metros quadrados, à beira do Mar Negro, construído por Putin ao custo de 1,3 bilhão de dólares, imagens que foram vistas 130 milhões de vezes. Ganhando cada vez mais projeção, o opositor foi vítima, em 2020, de uma tentativa de envenenamento com o agente nervoso novichok, produto tóxico da era soviética e marca registrada dos serviços secretos russos na eliminação de desafetos. Levado às pressas para a Alemanha em um jatinho acionado por ativistas, sobreviveu e tomou a arriscadíssima decisão de voltar à Rússia.
Preso ainda no avião, esperava provocar um levante popular em seu favor, o que de fato aconteceu por algumas semanas. Mas a repressão ao movimento foi feroz, os manifestantes deixaram as ruas e ele acabou condenado por “extremismo” a dezenove anos de cadeia. Navalny descrevia sua sentença como uma jornada. “Pensando bem, não estou na prisão, mas em uma viagem espacial. Para um mundo novo e maravilhoso”, escreveu. A viagem se encerrou abruptamente quando passou mal e morreu na remota colônia penal IK-3, um gulag no Círculo Polar Ártico, a 2 000 quilômetros de Moscou. De acordo com comunicado do serviço penitenciário, ele “não se sentiu bem depois de uma caminhada e perdeu a consciência quase imediatamente”. Uma equipe médica tentou reanimá-lo, mas foi declarado morto meia hora depois. “A causa está sendo apurada”, encerra o texto. A perícia pode levar até duas semanas. A mãe dele, Lyudmila, 69 anos, demorou seis dias para ver o corpo e diz estar sofrendo intimidação. “Eles estão me chantageando, estabelecendo as condições de onde, quando e como Alexey deve ser enterrado”, disse ela no vilarejo de Kharp, onde faz 10 graus negativos durante o dia. A mulher de Navalny, Yulia, 47 anos, que vive em Londres com os dois filhos, colocou-se à frente da causa defendida pelo marido e acusou o Kremlin de estar retendo o corpo à espera da eliminação dos efeitos de um novo envenenamento — acusação, segundo o governo, “sem fundamento e revoltante”. “Putin matou meu marido. Putin matou o pai dos meus filhos”, disse ela, com insistência e certeza.
Articulado e obstinado, mestre em diminuir a empáfia de Putin com ironia fina, Navalny tinha como inspiração os dissidentes que, arriscando tudo, levantaram a voz em desafio à então União Soviética. Mesmo confinado no fim do mundo, ele se fazia ouvir em cartas a aliados confiadas a seus advogados e nas esporádicas audiências de seus processos. Sua morte foi amplamente lamentada — o presidente Joe Biden e líderes europeus ameaçam impor novas sanções à Rússia como punição pelo que todos veem como uma execução. Ou melhor, quase todos. Donald Trump, admirador de Putin, fez breve menção ao “corajoso” russo e ao “triste” ocorrido, dedicando o grosso das mensagens na sua rede social a retratar-se como o Navalny americano, perseguido em uma caça às bruxas. O presidente Lula, em trecho de uma desastrada entrevista (leia na Carta ao Leitor e na reportagem da pág. 28) argumentou que falar agora sobre o assunto é especulação: “O cidadão morreu em uma prisão. Eu não sei se ele estava doente, se tinha algum problema”.
Na Rússia, muitas pessoas levaram flores e ergueram memoriais espontâneos para Navalny, mas os atos foram rigorosamente reprimidos, com pelo menos 400 presos. Seguro de seu poder e com uma boa medida da temperatura da opinião pública, Putin, ao menos internamente — e, ao menos, por enquanto — parece confiar que a oposição cercada de todos os lados e a maré de boas notícias (para ele, claro) suavizam significativamente o impacto do sacrifício de Navalny. No front, a Ucrânia anunciou a retirada de suas tropas em torno de Avdiivka, na região de Donetsk, um raro ganho territorial de Moscou nesta fase. Trata-se de uma cidade destruída e quase despovoada, mas onde as forças ucranianas resistiam há meses e agora recuaram às pressas, sem planejamento, vencidas pelo inimigo — um esboço da situação precária em todas as frentes. A fonte de recursos americanos que sustentou a resistência de Kiev secou depois que a oposição trumpista passou a barrar todos os projetos de lei nesse sentido. Recentemente, o Senado aprovou um pacote de ajuda externa de 95 bilhões de dólares, que inclui assistência à Ucrânia, mas o presidente da Câmara, o republicano Mike Johnson, sinalizou que não vai pô-lo em votação. No campo militar, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, demitiu o principal — e muito popular — general no comando, afirmando que as Forças Armadas precisam de correção de rota. “O desafio de Kiev é substancial, porque depende da ajuda externa para enfrentar o gigantesco Exército russo”, diz Franz-Stefan Gady, pesquisador do Institute for Strategic Studies, de Londres.
Há 24 anos no controle do Kremlin, o mais longevo líder russo desde Josef Stalin (1878-1953), Putin tem poderes quase ilimitados. Todos os que ousaram questionar sua legitimidade foram presos, fugiram para o exílio ou acabaram mortos em circunstâncias misteriosas. Novas leis contra a liberdade de expressão permitem a prisão de cidadãos comuns por motivos pífios e tempo indeterminado — na última década, a população carcerária aumentou quinze vezes. Uma reforma constitucional lhe permite concorrer a mais dois mandatos de seis anos. Nas eleições de março, 110 milhões de eleitores vão às urnas já sabendo o resultado. Dos 33 candidatos iniciais, 29 foram barrados pela Comissão Eleitoral e os três restantes são aliados do governo. “É impossível organizar qualquer tipo de oposição sob as atuais condições”, afirma Paul Stephan, professor de direito constitucional da Universidade da Virgínia. Da prisão, Navalny havia lançado uma tentativa de protesto: ao meio-dia da data das eleições, manifestantes se concentrariam em torno das seções eleitorais, sem votar em ninguém. Ninguém sabe se o plano tem chance de vingar.
Parte da apatia da população vem da virada da economia, que impediu a queda de qualidade de vida que se antecipava no começo da guerra. Putin estreitou laços com Índia, Irã, China e Coreia do Norte, passando a exportar prioritariamente para esses mercados. Consequência direta da guerra, a escalada nos preços das commodities ajudou os cofres de Moscou, injetando 320 bilhões de dólares nas receitas de exportação, um recorde. O PIB, que recuou 1,2% no primeiro ano da invasão, avançou 3,1% em 2023. Como 1 milhão de russos fugiram do país e boa parte das pessoas aptas foram convocadas, a mão de obra escasseou, o desemprego recuou para 2,9% e os salários subiram, estimulando o consumo. É nesse cenário que o presidente russo dá indícios ainda vagos de que se prepara para se sentar na mesa de negociação para o fim da guerra. Com a faca e o caviar na mão, sem oposição — e um sorriso nos lábios.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2024, edição nº 2881