Morre Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai, aos 89 anos
O ícone da esquerda na América Latina estava sob cuidados paliativos enquanto vivia com um câncer terminal no esôfago

O ex-presidente uruguaio José “Pepe” Mujica faleceu nesta terça-feira, 13, aos 89 anos. O político aposentado que foi símbolo da esquerda na América Latina estava sob cuidados paliativos durante a fase terminal de um câncer de esôfago, além de já diagnosticado com uma doença autoimune. Ele desistiu de fazer tratamento em janeiro, quando o tumor fez metástase e se espalhou apesar de 32 sessões de radioterapia.
A informação da morte foi confirmada pelo presidente uruguaio, Yamandú Orsi. “É com profundo pesar que anunciamos o falecimento do nosso colega Pepe Mujica. Presidente, ativista, referência e líder. Sentiremos muita falta de você, querido velho. Obrigado por tudo o que você nos deu e pelo seu profundo amor pelo seu povo”, escreveu em nota.
Em uma de suas últimas mensagens antes do falecimento, Mujica, lúcido até o fim, previu num relato emocionado a respeito de seu estado de saúde que poderia partir “qualquer dia desses”. Gravado em sua casa, um sítio em Rincón del Cerro, na zona rural de Montevidéu, o vídeo foi uma mensagem de gratidão por ter dedicado sua vida a uma causa, e sobre estar em paz com a trajetória que construiu.
“O ciclo da minha vida acabou”, reconheceu, “mas me reproduzo na voz das meninas e dos meninos que estão aqui, que continuarão a levantar as bandeiras pelas quais dediquei minha vida.”
Considerado um ícone esquerdista latino-americano, passou quase quinze anos preso durante a ditadura no Uruguai (1973-1985), sete dos quais isolado numa solitária, submetido a torturas, e longe dos livros que tanto ama (suportou a solidão, entre outros meios, fazendo amizade com um sapo). Antes de entrar para a guerrilha com o grupo Tupamaros no final da década de 1960, era floricultor, e por décadas forneceu belos espécimes para feiras e lojas locais. Depois, como ex-guerrilheiro, escreveu uma história de redenção com a redemocratização de seu país, que governou entre 2010 e 2015.
De fala mansa e pausada, Mujica se orgulhava de ostentar o título de o dirigente mais pobre do mundo, o que lhe daria autoridade para cobrar dos mais ricos que façam um pouco pelos mais pobres. Ele doava cerca de 90% do seu salário mensal, de US$ 12 mil, a instituições de caridade que beneficiam os mais vulneráveis e pequenos empresários.
Como presidente, nunca abandonou o estilo franciscano, vivendo num sítio e dirigindo um fusca azul modelo 1982, e avançou na legalização do aborto e na descriminalização da maconha (que ele afirmou jamais ter experimentado). Também lidou com tentativas de corrupção, as quais, segundo ele, foram devidamente rechaçadas. Aos poucos, ajudou a transformar o Uruguai numa das democracias mais saudáveis do mundo, regularmente elogiada pela força de suas instituições e pela civilidade de sua política. Em recente entrevista a VEJA, destacou a necessidade da política mover-se de acordo com a necessidade dos tempos.
“A esquerda brasileira errou, permaneceu estagnada no tempo e presa na literatura de uma época em um mundo que mudou. Esquerda é empatia, é solidariedade e é preocupação com a desigualdade. É sonhar com um mundo um pouco mais justo e com uma humanidade mais nobre. É o que a esquerda tem de mais bonito”, afirmou.
Depois da Presidência, tornou-se senador, cargo que já havia ocupado de 2000 a 2005. Em outubro de 2020, decidiu se aposentar com um gesto que diz mais sobre ele do que qualquer palavra. Escolheu anunciar que abandonava a ribalta ao lado do também senador Julio María Sanguinetti, estrela da direita que governou o país de 1985 a 1990 e depois de 1995 a 2000, em quem deu um emocionado abraço durante o comunicado (quebrando o protocolo da Covid-19, mas por lá a situação era mais tranquila).
“No meu jardim, faz décadas que não cultivo o ódio, porque aprendi uma dura lição que a vida me impôs. O ódio acaba idiotizando, nos faz perder objetividade”, declarou o ex-presidente uruguaio na época.
Seu legado é maior que sua história digna de filme e do que seu compromisso com a austeridade. Ele se tornou uma das figuras mais influentes e importantes da América Latina, muito por conta de sua filosofia clara e objetiva sobre o caminho para uma sociedade melhor e uma vida mais feliz. Como disse numa entrevista ao New York Times no ano passado, só existe uma vida, e depois ela acaba.
“Você precisa dar sentido a ela. Lute pela felicidade, não só pela riqueza”, afirmou.
Mujica deixou neste plano a esposa, a ex-senadora e ex-vice-presidente Lucía Topolansky, que conheceu quando era guerrilheira em 1971. Ela cumpriu a promessa de ficar com o marido “até o fim”. O casal, que soube cultivar o amor em meio à guerra com o Estado e mesmo quando perdeu a liberdade durante a ditadura, não teve filhos. Mas as ideias do “presidente filósofo” decerto se perpetuarão, como o próprio previu, nas vozes da próxima geração.
Nos seus últimos anos, após a aposentadoria, voltou a cultivar crisântemos na chácara em Rincón del Cerro. Não foram a única coisa que fez florescer.