Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Moradores de São Francisco querem menos ‘flower’ e mais ‘power’

Roubos e drogas são creditados a exageros da cultura libertária

Por Ricardo Ferraz, Amanda Péchy 3 jul 2022, 08h00

Percorrer a célebre Market Street, em São Francisco, é confirmar a fama da metrópole mais progressista do mundo. Ao longo da avenida que desemboca na bela baía que dá nome à cidade, casais gays passeiam de mãos dadas, artistas de rua se apresentam sem risco de repressão e lojas com cara de butique vendem maconha como um produto qualquer. A mentalidade de liberdade ampla e irrestrita tem raízes nas décadas de 60 e 70, quando os movimentos por direitos civis que se misturaram à cultura hippie frutificaram sob o sol da Califórnia. Os democratas dominam a política local há mais de quarenta anos, agitando bandeiras como direito ao aborto, tolerância ao uso de drogas e combate à criminalidade na sua origem. Pois bem: provando mais uma vez que não há bem que sempre dure, o flower power começa a dar sinais de cansaço e, em meio ao aumento de pequenos crimes, aluguéis exorbitantes e êxodo de moradores, São Francisco está revendo os próprios valores.

Uma comprovação recente de manchas de ferrugem na decantada cultura “paz e amor” foi a eleição que cassou o chefe da Procuradoria-Geral do município, Chesa Boudin. Advogado de esquerda, filho de uma longa linhagem de radicais (os pais, integrantes do grupo de guerrilha urbana Wea­ther Underground, passaram boa parte da vida presos), com estágio no Palácio de Miraflores, em Caracas, como intérprete na gestão Hugo Chávez, Boudin assumiu o posto em 2020 com a promessa de reformar o sistema judiciário. Alegando centrar fogo nos grandes traficantes, em vez de perder tempo com crimes menores, pôs-se a anular agravantes de pena, como pertencer a gangues e ser reincidente, e a estimular sentenças atreladas a reabilitação, em vez de punição. Resultado: a população prisional baixou 40% em três meses, sessenta promotores pediram para sair e os moradores de São Francisco, sem turistas por perto por causa da pandemia, viram suas ladeiras tomadas de moradores de rua, viciados e ladrões de lojas e de carros. O secretário esperneou, disse que a oposição a suas políticas era coisa da direita, e perdeu o emprego. “Boudin se tornou um símbolo de que a lei e a ordem estavam se desintegrando”, explica Bruce Cain, professor e cientista político da Universidade de Stanford.

A bem da verdade, Boudin não foi o único responsável pelo abrandamento da segurança que está na toada de São Francisco. O movimento começou em 2014, quando a Califórnia decidiu rebaixar de crime para contravenção a posse de pequenas quantidades de droga e os furtos de objetos com valor inferior a 950 dólares. Evidentemente, São Francisco acatou e ampliou as provisões, a ponto de esses delitos entrarem para o cotidiano da cidade. Nos supermercados, a mercadoria mais cara agora fica trancada em vitrines com cadeado. Os donos de carros deixam um aviso no para-brisa de que o veículo não está trancado e não tem nada de valor dentro, para evitar janelas quebradas (os arrombamentos triplicaram entre 2020 e 2021).

BASTA - Protesto contra Boudin, o secretário radical: ele acabou cassado -
BASTA - Protesto contra Boudin, o secretário radical: ele acabou cassado – (Jana Asenbrennerova/Special to The Chronicle/.)

A disseminação do opiáceo fentanil entre os consumidores de drogas, aliada à menor repressão, instalou na paisagem pessoas se injetando e até morrendo nas calçadas. “Há muitas iniciativas de amparo social públicas e privadas, mas elas não dão conta de mudar a realidade”, diz Ana Luisa Homonnay, brasileira que decidiu se mudar para um subúrbio após 25 anos morando na cidade. “Queria muito que meu filho crescesse em meio à diversidade, mas a gota d’água foi ver uma pessoa usando heroína na porta da minha casa”, conta.

Continua após a publicidade

Outra votação, no começo do ano, deixou claro que a maioria do moradores anda farta do que considera excessos na cultura libertária e progressista da cidade: o conselho escolar foi destituído depois que seus integrantes, em plena pandemia, dedicaram mais tempo a discussões para definir questões de gênero e etnicidade do que a debater as perdas (aliás, mudanças — perda, para os conselheiros, tinha conotação muito negativa) no aprendizado provocadas pelo longo período sem aulas. Uma resolução do conselho foi abolir a palavra “chefe” dos cargos do sistema educacional, por ferir sensibilidades dos primeiros povos. “Os cidadãos querem mais é viver em bairros seguros, ter um bom emprego e que seus filhos recebam uma boa educação”, diz Darry Sragow, professor de ciência política da Universidade da Califórnia do Sul.

Na cidade que perdeu um em cada vinte habitantes durante a pandemia, o casal que tem filhos é praticamente obrigado a se mudar por não poder arcar com o preço da moradia (São Francisco é atualmente a metrópole americana com menos crianças entre a população).

O encarecimento da moradia foi motivado principalmente pela enxurrada de novas contratações, com altos salários, das empresas de tecnologia no Vale do Silício. Mas também contribuiu o fato de qualquer tentativa de se substituir os predinhos de três andares por torres mais altas esbarrar em associações de moradores que se recusam a mudar o estilo de vida da cidade. Ficaram famosos os casos do condomínio com 63 unidades que não consegue aprovação para ocupar uma área abandonada de 9 000 metros quadrados porque ali existia um comércio de flores, e elas ainda desabrocham silvestres e sem método, e de outro edifício barrado porque sua sombra reduziria em 0,001% a luminosidade de um parque vizinho. Com essas e outras, a população cansada de guerra parece haver decretado o inimaginável: quer uma São Francisco mais careta.

Publicado em VEJA de 6 de julho de 2022, edição nº 2796

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.