Mikhail Gorbachev, o homem que demoliu um império
Poucos líderes do século XX, e de qualquer outro período, tiveram tanto impacto em seu tempo
No início foi um susto estético, a surpresa de uma figura diferente de todas as outras — depois de tantos mandachuvas da União Soviética carrancudos, de cara fechada e vastas sobrancelhas, invariavelmente enterrados em suas ushankas de pelúcia nos meses de inverno rigoroso, eis que enfim aparecia um dirigente ensolarado. Em março de 1985, com a morte de Konstantin Chernenko, o mundo descobriria Mikhail Gorbachev, alçado ao posto de secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética aos 54 anos, um menino diante da gerontocracia. Ele chamava a atenção pelo olhar calmo — e, sim, pela mancha vermelha na testa, um hemangioma. Com o tempo, e não demorou muito, aquele homem dissemelhante começaria a falar, viajar e publicar livros, e depois dele não sobraria pedra sobre pedra naquele pedaço geopolítico do planeta que Winston Churchill definira como “a cortina de ferro”.
Poucos líderes do século XX, e de qualquer outro período, tiveram tanto impacto em seu tempo. Foi uma avalanche. Debaixo de um par de palavras em russo que grassaria como vírus, antes da internet, antes das redes sociais — glasnost e perestroika —, o império antagonista dos Estados Unidos começaria a ruir, embora o anseio primevo de Gorbachev fosse apenas o da reforma. A glasnost (transparência) pretendia aproximar a população das decisões do Kremlin e combater a corrupção entre os apparatchik. A perestroika (reestruturação) era um tranco na centralização econômica imposta por Vladimir Lenin na Revolução de 1917. Os dois movimentos acelerariam o desmonte da União Soviética. De 1985 a 1991, Gorbachev tirou o fôlego da humanidade: restituiu a terra a camponeses sessenta anos depois da coletivização da agricultura; restaurou o pluralismo político e a liberdade de expressão; libertou presos políticos; autorizou a publicação de livros proibidos, como Doutor Jivago, etc. Eram mudanças em demasia num conjunto de repúblicas que nunca mudava — porque se mudasse terminaria, e foi o que aconteceu.
A onda final arrastou os países do Leste da Europa que funcionavam como satélites de Moscou, culminando na queda do Muro de Berlim, em 1989. Em agosto de 1991 um grupo de militares sequestrou Gorbachev, em um golpe fracassado, mas que aceleraria ainda mais o processo de decomposição. E então, às 19h32 de 25 de dezembro, a bandeira com a foice e o martelo foi arriada da Praça Vermelha, dando lugar ao pavilhão branco, azul e vermelho da Rússia de Boris Ieltsin. Era o fim da União Soviética, era também o fim da Guerra Fria, com a vitória dos Estados Unidos (o presidente era George Bush).
“O mercado não é uma invenção do capitalismo… É uma invenção da civilização.”
Mikhail Gorbachev (1931-2022)
Afastado da política, tendo depois se dedicado a questões ambientais, Gorbachev olharia para o que aprontou e seu resultado, o sucesso americano, com alguma decepção — apontando o dedo para aquela situação típica dos vencedores que não sabem aproveitar a glória. “No final da Guerra Fria, havia um clima de triunfo entre muitos americanos, e esse foi o ponto de partida para o colapso de tudo”, disse. Recentemente, ele criticou severamente a guerra deflagrada por Vladimir Putin contra a Ucrânia, mas se disse traído pelo Ocidente, que teria abandonado a Rússia. São observações talvez circunscritas demais para o rolo compressor empurrado por Gorbachev. Para entendê-lo, cabe melhor uma piada moscovita criada logo depois de a engrenagem demolidora começar a andar. Dois dirigentes comunistas se encontram nos idos do início dos anos 1990. Um deles pergunta: “Qual você acha que será o nosso futuro daqui a cinco anos?”. A resposta: “Meu querido, do jeito que as coisas vão, eu não sei sequer imaginar qual será o nosso passado”.
A invenção milagrosa de Gorbachev — a desconstrução do comunismo sem que fosse derramado sangue, a transição sem dor para a democracia — funcionaria mais tranquilamente na República Checa, na Polônia, na Hungria e na Alemanha Oriental. Houve violência apenas na Romênia (leia na pág. 86). Na Rússia, contudo, o vácuo autorizou o brotar de uma economia alimentada por chantagem, o vale-tudo das grandes riquezas produzidas pelo petróleo, os serviços públicos subtraídos pela corrupção. Não por acaso, uma pesquisa de opinião pública feita pelo instituto FOM por ocasião dos 80 anos de Gorbachev, em 2011, mostrou que 52% dos russos viam seu legado como “muito ruim”; apenas 11% o aprovavam. Naquele ano, ele ganhara enfim uma comenda do governo russo, mas sem muita fanfarra. De lá para cá, o desprezo só aumentou.
Dentro de casa, Gorbachev não fazia milagres — em 1996, candidatou-se à Presidência da Rússia e ficou com mero 0,5% dos votos (Ieltsin venceu). Nas feiras de badulaques de Moscou ele hoje é vendido como peça menor das matrioskas, aquelas bonecas de madeira de tamanhos variados, umas dentro das outras. Para fora, contudo, é a maior delas, um gigante histórico. Será sempre lembrado como promotor da liberdade (Nobel da Paz de 1990), ao menos entre quem estava do lado oposto ao da União Soviética que ele implodiu. Embora, como nota de ironia, Gorbachev tenha posado em 2007 para uma foto publicitária de malas da grife de luxo Louis Vuitton, destino risível para quem fez o que fez com a economia estatal.
Gorbachev viveu tanto que teve tempo de responder a uma pergunta fundamental: como gostaria de ser visto no futuro, que legado deixaria? “No final, a história fará o justo julgamento. Acredito firmemente que o meu trabalho e os meus esforços não foram em vão”, disse. Ao contrário do que previu o filósofo americano Francis Fukuyama, ao afirmar que o término da Guerra Fria representava o fim da história, com a difusão mundial das democracias liberais, a roda continua a girar — mas sem figuras do tamanho do comunista de carteirinha que moeu o comunismo. Mikhail Gorbachev morreu na última terça, 30, aos 91 anos. A causa da morte não foi divulgada.
Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805