Grandes civilizações germinaram às margens de rios, onde se dedicavam ao plantio e ao comércio. Em Paris, os primeiros habitantes atribuíam até propriedades mágicas ao seu curso d’água, o Sena, que atraía gente de toda parte e atravessava a cidade, desembocando no Canal da Mancha. No século XIX, a acelerada marcha da industrialização passou a entupir a artéria parisiense — e as de outras metrópoles — de detritos descartados in natura, a ponto de, em 1960, cientistas declararem o Sena “biologicamente morto”. Desde então, muito investimento foi feito para evitar o despejo de sujeira sem filtros no rio mais fotografado da Europa. Limpo ele ficou, mas ainda não alcançara a aspirada balneabilidade, degrau que permite um bom mergulho sob o olhar das gárgulas encarapitadas na Catedral de Notre-Dame. Agora falta pouco: graças a um esforço sem precedente de prevenção e preservação, as provas de triatlo e maratona aquática da Olimpíada de 2024 estão programadas para transcorrer em pleno Sena, palco também da cerimônia de abertura dos Jogos, com 160 barcos flutuando ao longo de 6 quilômetros de águas límpidas.
A iniciativa tornará próprios para banho os 777 quilômetros do rio. Orçado em 1,4 bilhão de euros, o projeto prevê a construção de um tanque cilíndrico de concreto com 50 metros de diâmetro e 34 metros de profundidade sob a Praça Marie Curie, na margem esquerda, com capacidade para 44 milhões de litros d’água — o equivalente a trinta piscinas olímpicas. A função do megapoço é reter por até 24 horas a água das chuvas que escorre pelas ruas sujas, evitando que ela entorne o lixo no rio. Essa água será bombeada por canos subterrâneos até estações de tratamento localizadas nos dois lados do Sena. Toda essa engenharia será subterrânea e invisível, coroada por um belo jardim. Em paralelo, uma moderna central com telões vai monitorar a situação do Sena em tempo real, exibindo os dados coletados por sensores que detectam os níveis de oxigênio e gás carbônico e a presença da perigosa bactéria E. coli. “É desafiador para uma cidade tão adensada e antiga”, diz Colombe Brossel, uma das engenheiras responsáveis pela obra.
Até os anos 1970, menos da metade de Paris possuía esgoto tratado e tudo desaguava no castigado Rio Sena. O primeiro grande projeto para mudar a ordem das coisas começou em 1989, tocado pelo então prefeito Jacques Chirac, com excelente resultado: o Sena apresenta hoje um décimo da poluição de três décadas atrás. Mesmo assim, não deu para Chirac cumprir sua promessa de, em três anos, nadar de braçadas nas águas limpas. A balneabilidade tropeçou sempre em um problema crônico, o ultrapassado sistema de esgotos da cidade, que data do século XIX. Quando chove forte, ele transborda e calcula-se que, só na capital, 2 bilhões de litros de água pluvial contaminada escapem para o rio. A função do megatanque é cortar o rastro de imundície.
Outras metrópoles europeias já dispõem de águas cristalinas para natação e mergulho, embora nenhum desses projetos tivesse a dimensão do de Paris. A sustentável Copenhague, na Dinamarca, gastou 44 milhões de dólares para tornar sua área portuária própria para banho, distanciando as galerias de águas pluviais e criando um sistema que avisa quando o nível de sujeira extrapola os limites aceitáveis. Na Suíça, o lago que dá nome a Zurique conseguiu voltar a exibir águas translúcidas. A natureza conspirou a favor em ambos os casos, já que o porto dinamarquês é regido pela dinâmica de previsíveis correntes marítimas e o lago suíço recebe a neve sem impurezas que derrete no topo dos Alpes. “Limpar rios que atravessam grandes extensões é tarefa mais complexa”, enfatiza Cédric Fissom, especialista da Universidade Le Havre. “Eles são afetados por incontáveis fontes de degradação na agricultura, na indústria e nas zonas urbanas.”
Conhecido no passado pelo nada delicado apelido “o grande fedor”, o Tâmisa londrino, cujo cheiro no século XIX chegava a suspender sessões no Parlamento às suas margens, atualmente é exemplo de como a persistência de mais de um século pode produzir um rio limpo. Mas o Tâmisa não é balneável — o plano mais perto disso contempla instalar piscinas ao longo do rio abastecidas com sua água submetida a um processo de filtragem. “As cidades do mundo todo estão reconquistando seus rios”, afirma a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, fazendo inveja aos paulistanos expostos à poluição dos rios que cortam a cidade, o Tietê e o Pinheiros.
Numa Olimpíada que pretende aprofundar a atual tendência de erguer jardins no lugar de ruas e ceder espaço dos carros aos pedestres, o Sena balneável, se der certo, pode ser um generoso legado no caminho de uma cidade mais sustentável, apagando da memória as ruas enlameadas após as chuvas do passado. “Inundações históricas, como a de 1910, deixaram traumas profundos em Paris”, lembra Éric Dussault, especialista em desenvolvimento urbano da universidade canadense de Laval. Em 1900, nos primeiros Jogos Olímpicos de Paris, os atletas da natação mergulharam em um Sena ainda sujo. Em 1923, o banho nele seria proibido. Tomara que vingue, na próxima Olimpíada, e a promessa de um mergulho em águas tão cheias de história.
Publicado em VEJA de 2 de março de 2022, edição nº 2778