Foi quase palpável o suspiro de alívio da metade dos eleitores americanos que planeja votar no Partido Democrata quando, lá pelo meio de suas quase duas horas de duração, ficou clara a predominância de Kamala Harris sobre o republicano Donald Trump no primeiro — e possivelmente único — debate entre os dois candidatos à Casa Branca. Harris entrou na corrida de supetão, faltando meros 105 dias para a votação. Transmitiu desde o primeiro dia um choque de animação e esperança na campanha, tarefa facilitada pelo eleitorado desgostoso com a insistência de Joe Biden em se reeleger, apesar da notória impopularidade, e ansiando por um salvador da pátria. Lendo discursos no teleprompter e aceitando participar de uma única e chapa-branca entrevista, emplacou uma imagem de vigor, juventude e alegria, mas faltava a prova dos nove: debater cara a cara com um showman profissional, com a tensão adicional da memória do desempenho desastroso de Biden contra Trump, a gota d’água para sua desistência.
Para a imensa satisfação da nação anti-Trump, Harris foi, viu e venceu — o que, no entanto, está longe de lhe garantir a maioria no Colégio Eleitoral em 5 de novembro. Com o eleitorado rachado ao meio e uma ínfima minoria ainda se declarando indecisa (fala-se em 200 000 pessoas), cada movimento da dupla, a partir de agora, será um clique, um meme, um post e uma alteração para cima ou para baixo nas pesquisas. Haja coração. Irônica e afiada, Harris tirou seu oponente do sério com provocações e o deixou na defensiva desde que os dois subiram ao palco e ela praticamente o forçou a um aperto de mão, apresentando-se (eles nunca haviam se encontrado): “Kamala Harris. Vamos fazer um bom debate”.
Repisou o quanto pôde temas em que Trump titubeia, como o direito ao aborto e uma prometida revolução no atendimento médico público (“Tenho o conceito de um plano”, esquivou-se o ex-presidente), e, de cutucada em cutucada, levou o adversário a repetir a absurda fake news de que imigrantes estão se alimentando de cães e gatos domésticos. “Eles comem seus bichinhos de estimação”, bradou Trump, em tom de fúria. Ela riu e balançou a cabeça. Saiu do duelo retórico cheia de atitude, com 63% achando que ela ganhou — com o endosso de Taylor Swift, influenciadora de influenciadores, que tem 284 milhões de seguidores e a quem, meses atrás, se atribuiu um mentiroso apoio ao republicano.
Orientada por uma equipe competente, a reinvenção política de Harris foi a mais rápida na história moderna da política americana. Enquanto vice de Biden, era vista como uma figura inexpressiva, progressista demais e propensa a gafes. Candidata, converteu-se da noite para o dia em líder autoconfiante, assertiva e jovem — tem 59 anos, contra 78 de Trump e 81 do ex-chefe. Embora não renegue o governo Biden, e nem poderia, faz questão de frisar um olhar para o futuro. Assim conseguiu energizar o eleitorado democrata e arrecadar 361 milhões de dólares para o seu comitê em dois meses, o triplo de Trump no período. Feitos impressionantes, mas pouco efetivos na hora do vamos ver, já que Harris prega para convertidos. Na briga de verdade, por quem ainda não decidiu ou pode mudar de voto, ela está só 2,6 pontos à frente de Trump na média das pesquisas nacionais e praticamente empatada com ele nos chamados swing states — Wisconsin, Michigan, Pensilvânia, Geórgia, Nevada, Arizona e Carolina do Norte (veja o quadro) —, onde as preferências se alternam e cujos delegados decidirão a eleição.
Ex-promotora e ex-secretária da Justiça na Califórnia — o rival, lembre-se, é “criminoso condenado” pela Justiça por falsificar documentos para encobrir suborno a uma atriz pornô —, senadora de primeiro mandato que se pré-candidatou à Presidência em 2020 e acabou integrando a chapa de Biden, Harris é pouco conhecida do público e coleciona vídeos do passado em que se alinha à ala mais à esquerda do partido, da qual o americano médio tem pavor. A campanha republicana ressalta ao máximo as falas da “camarada Kamala”, enquanto ela dá nó na oratória para mostrar que mudou, mas não mudou. Muito cobrada para explicar seus planos e ideias, Harris até agora pouca coisa adiantou. O debate mostrou que, pelo menos neste momento, a tática será investir contra Trump, com mais ironia do que agressividade, ressaltando que ele tem a cabeça voltada para o passado e compromisso zero com a democracia. Ao mesmo tempo, acena com a pacificação — disse que, se eleita, convidará um republicano para seu gabinete e poupa de críticas os eleitores trumpistas, um erro crasso de Hillary Clinton, que no pleito de 2016 os classificou de “deploráveis”.
Tema sensível na polarizada sociedade americana, o perfil étnico de Harris, filha de pai jamaicano e mãe indiana, é pouco explorado por ela e pelos marqueteiros do Partido Democrata, que preferem salientar sua trajetória de vida e sua faceta “gente como a gente”. Nesse ponto, é ajudada pelo simpático marido, Douglas Emhoff, que deixou a carreira de advogado de sucesso em Los Angeles para apoiá-la, apresenta-se como segundo-cavalheiro e conta histórias dos tempos de namoro dos dois. É uma estratégia semelhante à usada por Barack Obama em 2008, ao se apresentar como político pragmático e de centro que teve sucesso graças ao trabalho duro. A ascensão por esforço próprio cria conexão com relevantes grupos de eleitores que tendem a votar em Trump, como os latinos (36 milhões e 15% do eleitorado) e a classe média baixa branca, que associa o Partido Democrata às elites. “O gênero e a raça ainda têm papel decisivo na política. Mas tudo indica que o eleitor está com a cabeça mais aberta à liderança de uma mulher”, diz Duchess Harris, professora de história do Macalester College, em Mineápolis.
A candidatura da democrata esbarra ainda na desaprovação popular ao governo Biden nos dois quesitos que compõem as maiores preocupações dos americanos agora: imigração e inflação. A entrada de ilegais explodiu nos últimos anos, um tema exaustivamente explorado por Trump. “Kamala tornará a invasão exponencialmente pior”, disse ele no debate. Medidas rigorosas baixadas por decreto, em junho, colocaram a situação sob controle, mas o estrago estava feito. Na economia, os consumidores sentem os efeitos de anos de inflação elevada e sabem que ela está caindo, mas os preços continuam altos — mais altos do que no governo Trump. Para atacar o problema, Harris apresentou uma plataforma vaga, que resvala para o populismo, prometendo uma linha de crédito de 25 000 dólares para aquisição da primeira casa própria e mal explicados controles de preços nos supermercados. “Uma regra básica da economia é que a distribuição de dinheiro sem planejamento pode alimentar a inflação, encarecendo os preços”, alerta Michael Faulkender, professor de finanças da Universidade de Maryland.
Entrar na corrida quando ela já está em andamento aconteceu antes, mas nunca com tempo tão exíguo. Em 1968, Lyndon Johnson, pressionado pela onda de protestos contra a guerra no Vietnã, desistiu de se reeleger em favor de seu vice, Hubert Humphrey (que perdeu para Richard Nixon). Faltavam 213 dias para a eleição, mais que o dobro de agora. “Este é um pleito sem precedentes, com muita coisa em jogo”, afirma Corey Brettschneider, autor do livro Os Presidentes e o Povo: Cinco Líderes que Ameaçaram a Democracia e os Cidadãos que Lutaram para Defendê-la. Com tão pouco tempo para convencer os indecisos de que é a melhor opção, Harris anda na corda bamba. Ela pode não dizer, com nitidez, quem é, mas tira partido de quem não é. “Claramente, não sou Biden nem Trump”, disse no debate. Manter viva a euforia dos democratas para que saiam de casa e votem, atrair quem ainda não se decidiu, chacoalhar o clima de “já ganhou” que envolvia Trump até recentemente — haja terninho, salto alto e atitude para Kamala Harris conseguir virar o jogo nas próximas semanas. Trump está acuado.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2024, edição nº 2910