Os mísseis americanos que eliminaram o comandante da Guarda Revolucionária Qasem Soleimani, dono de extensa folha de atentados terroristas e o número 2 na hierarquia do poder no Irã, produziram uma situação impensável: esfolado por desalentadores indicadores socioeconômicos e sacudido há meses por manifestações contra o regime do aiatolá Ali Khamenei, o país rachado de repente se uniu, canalizando suas insatisfações contra os Estados Unidos de Donald Trump. Não durou. No dia 8 de janeiro, pouco depois de os iranianos darem o troco acertando duas bases americanas, o voo 752 da Ukraine International Airlines despencaria no solo de Teerã com 176 passageiros a bordo, sem deixar sobreviventes. Apesar de toda a circunstância sugerir uma relação óbvia entre um míssil daqui, o outro dali, o governo iraniano negou enfaticamente qualquer responsabilidade. Escamoteou a verdade sobre a tragédia quanto pôde, até que, enfim, assumiu o abatimento “por engano” do avião. E a população voltou a marchar resoluta contra o sistema fundamentalista tocado pelos aiatolás.
A falta de transparência em torno do voo que caiu logo que decolou da capital iraniana rumo a Kiev foi o combustível para a nova onda de protestos, duramente repreendida, como é praxe. A prestação de contas em pílulas (“Alguns culpados foram presos”, disse o governo, mas até a quinta-feira 16 não havia divulgado nomes nem detalhes do roteiro desastroso) e o mea-culpa parcial (“A tragédia tem origem em agressões americanas”, esquivou-se o presidente Hassan Rouhani) deram fôlego a cartazes como “Khamenei assassino” e “Morte ao ditador”. “A mentira dos aiatolás reacendeu a raiva antirregime e o fragilizou”, avalia Roland Paris, especialista em Oriente Médio da Universidade de Ottawa. Mas ninguém aposta que o abalo levará à ruína do regime tão cedo, ao menos com as fichas postas sobre o tabuleiro neste momento. “A queda do aiatolá só seria possível com uma intervenção da Casa Branca, que já sinalizou não estar disposta a pagar o alto preço disso agora”, diz Paris.
Superada a semana mais tensa no Oriente Médio em décadas, o xadrez geopolítico segue intrincado, mas já ficou claro que a pressão externa contra o Irã só vai subir. Trump avisou que apertará o cerco das sanções econômicas e se empenha em impor um acordo nuclear mais restritivo que o atual, do qual ele próprio debandou em 2018 por julgá-lo demasiado “generoso”. Pois nem esse vem sendo respeitado pelo Irã — e, para piorar, com a crise deflagrada, o aiatolá afirmou que vai acelerar os trabalhos em suas usinas em vez de recuar no enriquecimento de urânio, a matéria-prima para a bomba atômica (essa a razão de ser do acerto internacional). Na terça-feira 14, foi a vez de França, Alemanha e Reino Unido questionarem o aberto e sistemático descumprimento do pacto, o que pode levar a um embargo da ONU ao Irã — situação anterior ao acordo. “Mesmo com toda a pressão, é difícil acreditar que os iranianos aceitarão um tratado que acabará por restringir o desenvolvimento de mísseis e podar sua expansão militar no Oriente Médio”, analisa Hooshang Amirahmadi, presidente do Conselho Iraniano-Americano. Não há nenhum sinal de que a temperatura nesse caldeirão sempre pronto a entrar em ebulição vá abrandar.
Publicado em VEJA de 22 de janeiro de 2020, edição nº 2670