Não há fleuma inglesa que resista a tantos problemas ao mesmo tempo. A inflação bate recorde, uma seca prolongada baixou os reservatórios a ponto de faltar água nas torneiras e trabalhadores entram em greve, uma forma de pressão que Margaret Thatcher parecia ter esvaziado para sempre. Como se não bastasse, o verão escorchante eleva às alturas o grau de irritação de uma população despreparada para sentir calor. Em meio a tudo isso, Boris Johnson, o primeiro-ministro que tapa buraco até o anúncio de seu sucessor, em 5 de setembro, tira férias semana sim, semana não, e não mexe uma palha, alegando que as decisões virão do próximo governo. Definitivamente, há algo que não está cheirando bem no Reino Unido.
Culminando (por enquanto) seguidas altas mensais, a inflação em julho chegou a 10,1%, o primeiro aumento de dois dígitos em mais de quatro décadas. O próprio Banco da Inglaterra antecipa que atinja 13% e um catastrofista relatório do banco Citi alerta que a escalada inflacionária está “entrando na estratosfera”, devendo alcançar 18% em janeiro — o que, nos seus cálculos, vai catapultar a taxa básica de juros de 1,75% para inimagináveis 7% ao ano. Inflação é hoje um problema planetário e suas causas no Reino Unido não diferem das de outros países: o gargalo do abastecimento pós-pandemia, a falta de mão de obra e a crise energética decorrente da guerra na Ucrânia. Na ilha britânica, porém, o vazio de governo é fator decisivo na enxurrada de previsões sombrias. “É como esperar a chegada de um tufão. Sabemos que coisas ruins vão acontecer e não há ninguém para tomar providências”, compara Steven Fielding, professor de história política da Universidade de Nottingham.
Como os salários estão longe de acompanhar a elevação de preços, os carrinhos dos clientes nos supermercados ficam cada vez mais vazios. Inconformados, os ferroviários promoveram em julho uma greve que afetou milhões de passageiros dos tradicionalmente confiáveis trens britânicos. O exemplo ou já foi, ou está para ser seguido por bombeiros, médicos, professores, funcionários dos correios, servidores públicos, advogados, engenheiros das operadoras de telecomunicações e outros. A produtividade entrou em queda livre e o PIB, depois de recuar 0,2% em abril, teve leve recuperação para 0,5% positivo em maio, mas deve encolher mais do que se expandir até o fim do ano, colocando o país na trilha da recessão.
De todos os perrengues, o que mais tira o sono dos britânicos é a crise de energia a poucos meses do inverno. O bloqueio do fluxo de gás russo para a Europa impactou com força o Reino Unido, devido ao apoio ostensivo de Johnson à Ucrânia. Como 40% do aquecimento das casas é a gás e não há governo para buscar novas formas de suprimento, os preços dispararam — a previsão é de que o gasto mensal de energia nos lares britânicos mais do que duplique no ano que vem.
O Serviço Nacional de Saúde, ele próprio em frangalhos por falta de braços, alertou recentemente para a possibilidade de um inverno no qual as pessoas terão pela frente “a terrível escolha entre pular refeições para aquecer a casa ou comer e precisar suportar frio e umidade”. Os dois candidatos à liderança do Partido Conservador — e, por tabela, ao cargo de primeiro-ministro —, o ex-ministro da Economia Rishi Sunak e a favorita Liz Truss, ministra das Relações Exteriores, deslancharam suas campanhas encarnando Margaret Thatcher e seu feroz liberalismo. Diante das peculiaridades da crise atual, porém, voltaram atrás e já falam em cortar impostos de energia e dar ajuda financeira aos mais necessitados. Ganhe quem ganhar, vai ser dureza encarar, além da crise econômica, um descontentamento de tirar inglês do sério.
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804