No dia 24 de novembro, um domingo, a Ilha de Hong Kong teve seu primeiro fim de semana tranquilo em oito meses. Em vez de irem para as ruas, os manifestantes que desafiam a truculenta repressão policial todo sábado e domingo desde abril tiraram uma folga para que a população pudesse votar. O que era uma eleição sem relevância, de representantes locais (o único tipo que as autoridades de Pequim permitem), virou ato de desobediência civil. A turma do contra pôs um candidato em cada vaga, convocou os eleitores a votar neles e ganhou de lavada. O recado ao gigante continental que afia as garras para abocanhar o território semiautônomo: por mais que jovens rebeldes perturbem a vida da ilha, antes um oásis de prosperidade, a maioria dos moradores apoia e compartilha sua preocupação com o futuro. Votação encerrada, as manifestações voltaram com vigor redobrado — e a repressão policial também. Em cada enfrentamento, os jatos de água, as balas de borracha, os cassetetes e as bombas de gás lacrimogêneo da tropa são rebatidos com coquetéis molotov e até arco e flecha. Dois fatores destacam o tumulto cotidiano de Hong Kong das mobilizações populares que se espraiaram pelo mundo em 2019: sua motivação e seu propósito. Ao contrário da insatisfação movida a raiva e desesperança na América Latina, Europa e Oriente Médio, os jovens de Hong Kong lutam por um ideal. Em vez de pretenderem derrubar governos, eles querem independência.
Território chinês administrado pelo Reino Unido por um século, Hong Kong foi devolvido em 1997, mas a China só terá poder total sobre seu destino depois de um período de transição de cinquenta anos. O que os jovens rebeldes desejam agora, antes do fim do prazo, é estender a autonomia indefinidamente — e talvez, quem sabe, lá na frente, a ilha possa se tornar independente de vez. No meio-tempo, vão inventando um modelo de protesto que vem sendo replicado em toda parte. Não há líderes definidos. Convocações, sempre por aplicativos de mensagem. Máscara cirúrgica é imprescindível. Guarda-chuva, opcional.
Publicado em VEJA de 1º de janeiro de 2020, edição nº 2667