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Há algo de novo nos EUA

No Partido Democrata e sobretudo entre os jovens americanos, posições e políticas à esquerda ganham tração — e já têm adeptos até entre os bilionários

Por Lúcia Guimarães, de Nova York
Atualizado em 30 jul 2020, 19h54 - Publicado em 22 fev 2019, 07h00

O político eleito mais popular dos Estados Unidos é o senador de Vermont Bernie Sanders. Ele leva crédito por cutucar temas tabus afeitos ao pensamento de esquerda que sempre incomodaram o Partido Democrata. Ganhou musculatura ao desafiar Hillary Clinton nas primárias presidenciais de 2016. Ainda assim, quando o declarado socialista Sanders anunciou sua pré-candidatura à Presidência na terça-feira 19, não foi recebido com aclamação condizente com sua popularidade — mas com uma rea­ção semelhante a “pegue sua senha e entre na fila”. Os democratas já têm alternativas de pré-candidatos mais jovens e etnicamente diversos, como a senadora Kamala Harris, californiana de origem hindu e jamaicana, e o hispânico Julián Castro.

O que mudou desde que o senador de 77 anos enfrentou Hillary? Dizer que Donald Trump — às voltas com a obsessão pelo muro na fronteira com o México — é o cabo eleitoral ideal da esquerda americana significa simplificar demais o papel do presidente populista que cortou impostos para corporações e milionários e leva à falência agricultores com sua guerra comercial. “Trump prestou um tremendo serviço público ao país”, disse a VEJA Anand Giridharadas, autor do best­-seller Winners Take All (Os vencedores levam tudo). “Trump foi o equivalente a acordar de manhã, olhar-se no espelho e ver que seu rosto está deformado”, prosseguiu. “Sem ele, talvez nós não fôssemos procurar o médico.” O livro de Giridharadas, sucesso de crítica incluído nas listas dos títulos mais influentes de 2018, questiona o bom-mocismo da elite global convencida de que as doações para boas causas justificam a preservação dos privilégios do status quo numa era de explosão de desigualdade.

Desde o discurso do Estado da União, no último dia 5, Trump não para de falar em “socialismo”, certo de que sapecar o rótulo no Partido Democrata é ouro de marketing para a campanha de reeleição em 2020. Alguns dos dez democratas que já se declararam ou estudam declarar-se pré­-can­di­datos defendem iniciativas que, no longínquo 2016, seriam marginalizadas na plataforma democrata, como Medicare para todos. Medicare é o programa de seguro-saúde do governo federal destinado a pessoas com mais de 65 anos e portadoras de deficiências.

Outra bandeira de pré-candidatos como Bernie Sanders e a senadora Elizabeth Warren, de Massachusetts, é taxar os ricos para financiar programas sociais. Uma pesquisa da empresa Morning Consult, feita na primeira semana de fevereiro, revelou um apoio sem precedentes a impostos sobre fortunas ou rendas de milionários e bilionários: 61% dos eleitores defendem a taxação em 2% de fortunas acima de 50 milhões de dólares e em 3% a partir de 1 bilhão, como propõe Warren. Sanders quer taxar heranças acima de 3,5 milhões de dólares (o patamar atual é de 11 milhões de dólares).

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O uso do socialismo como bordão pode assombrar americanos mais velhos, que o associam à Guerra Fria, a um passo no caminho do comunismo. “Não vai funcionar como estratégia”, disse a VEJA o democrata Howard Dean, ex-candidato presidencial, ex-­governador de Vermont e ex-presidente do Comitê Democrata Nacional. “O slogan só vai repercutir entre os que já aderem ao presidente. Nossa base são os eleitores abaixo de 35, 40 anos, mulheres e não brancos.” Dean acaba de assumir a força-tarefa do partido que vai implementar o intercâmbio em tempo real de bancos de dados de eleitores, numa parceria entre estados, a liderança nacional e organizações que atuam para o partido. Para Dean, não existe propriamente uma forte guinada à esquerda, tanto que uma pesquisa do instituto Gallup informa que 51% dos eleitores democratas preferem que o partido se volte para o centro. Para ele, o que salta aos olhos é o contraste agudo entre os eleitores mais velhos e os jovens.

O mesmo estudo do Gallup mostra que mais da metade dos americanos entre 18 e 29 anos tem uma visão positiva da palavra “socialismo”. Para a nova geração, o termo não está associado à coletivização de propriedade. Ao contrário do establishment grisalho do Partido Democrata, eleitores mais jovens não consideram tabu defender uma rede de suporte social e acesso universal ao seguro-saúde, ou seja, uma social-democracia à europeia. A historiadora Jill Lepore, da Universidade Harvard, considera ainda tímida a simpatia pela esquerda entre a nova geração política e aponta uma diferença crucial em relação a líderes originados do movimento sindical que, a partir da segunda metade do século XIX, investiam contra cartéis, como o das ferrovias. Jill não vê nenhuma disposição de enfrentamento do monopólio das ferrovias digitais contemporâneas. Em entrevista recente à rádio pública nova-­iorquina WNYC, a historiadora disse não acreditar que os integrantes da geração millennial tenham estômago para brigar pelo controle sobre seus dados, que têm sido manipulados sem permissão. “Os jovens querem apenas atingir seus seguidores pelo Facebook, tuitar e vender suas camisetas pela Amazon”, disse.

“O problema do Partido Democrata a partir dos anos 1990”, segundo Anand Giridharadas, “foi tentar convencer os eleitores do ganha-ganha de que é possível atender Wall Street e a classe média e trabalhadores, tudo ao mesmo tempo.” Imaginemos um milionário financista de Nova York concordando com essa declaração. Não só um, mas dezenas deles, concentrados no grupo Patriotic Millionaires (Milionários Patrióticos), que fazem campanha para que o Leão americano deixe seus bolsos mais leves.

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Pois a cena inusitada aconteceu na semana passada em Albany, capital do Estado de Nova York. Morris ­Pearl, líder do Patriotic Millionaires e ex-executivo da BlackRock, uma das maiores gestoras de ativos no mundo, suplicava ao Legislativo estadual que aumentasse o imposto sobre famílias com renda anual de mais de 5 milhões de dólares. Soa improvável, mas no clube dos grandes beneficiados com a concentração de renda nas décadas recentes ganha tração a noção de que os 5% no topo da pirâmide precisam abrir mão de uma fração de suas fortunas e ajudar a recuperar a infraestrutura dilapidada, a educação pública e promover habitação mais barata.

Um exemplo é um investidor como Seth Klarman, fundador do Baupost Group, um hedge fund de 30 bilhões de dólares, proferir um sacrilégio para a sensibilidade da entidade que atende pelo nome genérico de “mercado”. Num ataque à noção de maximização do valor para acionistas, Klarman defendeu, em outubro passado, num discurso na Harvard, a ideia de que as empresas dispensem mais atenção a quem importa — segundo ele, consumidores, empregados, a comunidade, o país e o planeta.

Talvez a lente tradicional de observação do espectro político esteja embaçada e seja preciso aventurar-se além. “Quando comecei a turnê promocional do livro, em agosto”, lembra Giridharadas, “entrevistadores e leitores ficavam estupefatos quando eu perguntava se precisamos de bilionários. Ao longo dos meses, a reação mudou.” Talvez seja apenas reação a Trump, numa gangorra natural, mas há algo de novo nos Estados Unidos.

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Publicado em VEJA de 27 de fevereiro de 2019, edição nº 2623

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