Governos cuidam de economia, segurança, educação, saúde e, no Japão, dedicam-se ainda a uma função insólita: estimular casamentos. Parece estranho, mas é só o começo. Na Terra do Sol Nascente, 43 das 47 prefeituras lançaram aplicativos de paquera no estilo do Tinder para facilitar encontros. Se os usuários derem match (para usar o termo comumente empregado nessas redes), podem acabar no altar. O que move o Estado nessa direção é uma constatação que tem deixado os japoneses preocupados, como se o rastilho de uma bomba estivesse aceso — em 2019, pelo sexto ano consecutivo, houve queda nos registros de casórios (veja o quadro). Pouco mais de 580 000 foram selados em 2018, o menor índice desde a II Guerra. Por que o governo se incomoda tanto com isso? A demografia tem a resposta: menos uniões significam menos bebês, o que, para uma nação que vem perdendo meio milhão de habitantes por ano e concentra o maior porcentual de idosos do planeta (eles representam um terço da população), é um terremoto com potência para abalar os planos de crescimento do país.
A busca por uma cara-metade na internet ganhou até nome: konkatsu, uma variação de shukatsu, a procura por emprego. Embora os pioneiros aplicativos tenham surgido há dez anos, apenas agora se disseminaram e se sofisticaram, dando conta de juntar gente que vive em todo o território. Esse é, aliás, um objetivo declarado desses apps, que miram atenuar o desequilíbrio entre homens e mulheres em um pontilhado de cidades de menor porte. “Nesses lugares, os homens ficam para perpetuar os negócios da família em atividades como a agricultura, enquanto as mulheres, sem oportunidades, migram para os grandes centros atrás de trabalho”, diz o sociólogo Hiroshi Onu, da Universidade Hitotsubashi. Esse unmatch (ou desencontro, para sair do jargão) está na raiz do esvaziamento de regiões inteiras, onde a população encolhe 1% ao ano. Em certos vilarejos ninguém tem menos de 70 anos e imperam as chamadas “ruas das venezianas”. Como as lojas não abrem, elas estão sempre fechadas.
O Japão conserva uma tradição milenar de casamentos arranjados, intermediados por alguém de respeito na comunidade que examina o passado das famílias do noivo e da noiva e seu status social (o do homem deve ser superior ao da mulher). Essa prática, que já não se vê em cidades grandes como Tóquio e Osaka, está rareando também no campo — e é aí que entram os aplicativos, versão moderna, digamos assim, do bom e velho casamenteiro. “Esperamos que as pessoas entrem no aplicativo e decidam morar e casar-se em Akita”, diz Rumiko Saito, do Centro de Suporte ao Casamento (eis o nome do departamento) do município, que fica no norte do país.
Mas algumas tradições muito anteriores à internet e mais ainda ao Tinder persistem e contribuem para que os jovens adiem a troca de alianças — ou mesmo desistam do anel. “O homem se sente obrigado a desempenhar o papel de provedor do lar e, como os salários estão achatados, muitos não se veem aptos para o casamento”, observa Kumiko Namoto, especialista em gênero da Universidade de Kioto. Já as mulheres têm fugido do altar para evitar um destino que lhes soa incontornável: viver limitadas às tarefas domésticas. Houve outro momento na história japonesa em que o governo deu um empurrãozinho (ou seria pressão?) aos pombinhos: “Deem à luz e multipliquem-se pela nação” era o slogan de uma campanha que visava reanimar as taxas de natalidade, derrubadas pela II Guerra. Naquela época não havia o peso das arrepiantes projeções de hoje — a população nipônica deve diminuir de 126 para 95 milhões em cinquenta anos, quando quatro de cada dez cidadãos terão passado da barreira dos 60 anos.
Todo esse caldo demográfico começa a entornar sobre a economia, que se ressente da falta de braços e cérebros. Não existe hoje no Japão gente em número suficiente para preencher as vagas de emprego, e o país (outra tradição) nunca foi afeito à ideia de abrir suas portas à imigração. O governo até elaborou um pacote de medidas para suavizar o batente dos casais com um bebê: a ideia é ampliar o número de creches e fazer uma reforma nas regras trabalhistas, de modo a que fiquem mais amigáveis para os que têm filhos. Quem sabe mais pessoas não se animam? Por ora, o Japão encabeça a tendência mundial de queda da natalidade — a média atual é de 1,4 nascimento por mulher, abaixo da chamada taxa de reposição de duas crianças por casal, necessária para que a população não mingue. Daí a função de cupido dos governantes, que ainda organizam tours para a zona rural com o propósito declarado de elevar as chances de encontros amorosos. Feito isso, é cruzar os dedinhos e torcer por um match.
Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659