Nas mãos do Brasil pela primeira vez, a presidência rotativa do G20 encontrou na reunião de cúpula, realizada nos dias 18 e 19 no Rio de Janeiro, todos os obstáculos esperados em um mundo onde o diálogo anda cada vez mais emperrado. No contexto da guerra em solo europeu, que já dura quase três anos, blocos pró-Rússia e pró-Ucrânia tiveram suas divergências aprofundadas pelo recente acirramento do conflito. A outra guerra em andamento, no Oriente Médio, não tem nenhum representante direto no grupo, mas seus mísseis também ecoaram nas falas contra e a favor de Israel e palestinos. Clima e combate à desigualdade foram assuntos difíceis, com interesses conflitantes rondando as conversas. Como se não bastasse, as 55 delegações que viajaram ao Rio carregavam na maleta suas próprias dores de cabeça domésticas, dificultando consensos.
Para enfrentar essa realidade, o governo de Lula apostou no pragmatismo, com temas palatáveis, e obteve um saldo considerado positivo. “A diplomacia brasileira foi inteligente ao buscar não os resultados ideais, mas os possíveis”, avalia Guilherme Casarões, professor de ciência política da FGV. “Lula saiu fortalecido.” Em uma manobra que deu resultado, a declaração conjunta da cúpula saiu na segunda-feira, antes do esperado, dando chance à manifestação de divergências no dia seguinte, sem que se alterasse o texto final, que aborda temas como taxação de super-ricos, igualdade de gênero e clima (o mais complicado, segundo diplomatas ouvidos por VEJA, devido à resistência de produtores de combustíveis fósseis).
Tudo foi suavizado pelos termos genéricos de praxe — a taxação dos muito ricos, por exemplo, não determina um percentual específico, apenas o princípio de “garantir que indivíduos de patrimônio líquido ultra-alto sejam efetivamente tributados”. O legado mais celebrado da presidência brasileira do G20 foi a adesão de 82 países a um projeto de estimação de Lula, a Aliança Global Contra a Fome e a Pobreza, mecanismo independente que será gerido pelo Brasil e pela FAO, órgão da ONU para agricultura e alimentação. Repleta de compromissos difíceis de serem cumpridos, ela prevê transferência de renda, programas de alimentação escolar e captação de recursos para reduzir essas duas manchas em seis anos.
Até o argentino Javier Milei assinou embaixo da nova aliança — o último a fazê-lo, depois de muito muxoxo. Maior entrave nas negociações, Milei assinou também a declaração final, mas fez questão de proclamar em plenário suas objeções à taxação das grandes fortunas (acha que “ninguém deve ser punido por ter dinheiro”), à agenda da ONU sobre desenvolvimento sustentável (considera o aquecimento global uma “mentira marxista”) e a qualquer menção à palavra “gênero” (abomina a questão identitária). Credita-se o assentimento ao francês Emmanuel Macron, que foi a Buenos Aires dias antes para “amaciar” o argentino, segundo fontes ouvidas por VEJA.
Sobre todo o processo, pairou a ausência de Donald Trump, de quem se espera travar a maioria dos consensos obtidos a duras penas quando voltar à Casa Branca, em janeiro. “Isso esvazia as intenções declaradas”, admitiu um integrante da diplomacia brasileira. No seu aceno de despedida do poder, Joe Biden, um “pato manco”, como os americanos chamam o presidente que está indo embora, perdeu a hora e não apareceu na foto oficial (também faltaram o canadense Justin Trudeau e a italiana Giorgia Meloni). A foto foi refeita, com os três, mas sem Milei. Biden visitou a Amazônia, onde anunciou 50 milhões de dólares para proteger a floresta e 325 milhões ao Banco Mundial para projetos de energia limpa. Contrário a despejar dólares fora do país, Trump pode voltar atrás em tudo. Mas enquanto o amanhã não vem, o Brasil comemora o sucesso de hoje, que precisa ainda sair do papel.
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920