Exposição no Museu Judaico de Berlim resgata ironia ácida de Curt Bloch
Revista satírica clandestina foi criada no auge da perseguição nazista
É possível rir na tragédia? Sim, é o que revela a fascinante obra do judeu alemão Curt Bloch (1908-1975), cuja memória será lembrada a partir de fevereiro numa exposição do Museu Judaico de Berlim. Refugiado na Holanda durante o período mais sombrio da II Guerra Mundial, o jovem advogado escapou das garras do nazismo escondendo-se no sótão da casa de uma governanta e um agente funerário. Para afastar o drama da situação, ele produziu uma revista de humor artesanal com a ajuda de dois outros ocupantes do esconderijo. Intitulada Het Onderwater Cabaret (O Cabaré Submerso, na tradução do holandês), a publicação era uma espécie de almanaque satírico com textos e poemas esculhambando os carrascos alemães.
Todas as semanas, de agosto de 1943 a abril de 1945, Bloch produziu com seus “colaboradores” uma nova edição de Het Onderwater Cabaret. Criou 95 livretos de pequeno formato, com capas feitas a partir de colagens e contendo um total de quase 500 poemas, nos quais escreveu sobre os crimes dos nazistas e seus colaboradores, o curso da guerra, a situação na clandestinidade, o destino da família e a derrota iminente das potências do Eixo. É um trabalho fascinante, considerando que foi feito de modo clandestino, em meio a uma guerra de grandes proporções e a uma perseguição genocida. O trabalho circulava entre alguns leitores, não mais do que vinte ou trinta. Graças a uma organização bem articulada de mensageiros que traziam comida, as revistas alcançavam outros esconderijos.
No início da guerra, Bloch escolheu se fixar na Holanda em razão da política externa de neutralidade e se refugiou em Amsterdã. Quando a Alemanha, com planos de conquistar a França, invadiu os Países Baixos na madrugada de 10 de maio de 1940, conseguiu fugir para a cidade de Enschede. Ele e outros dois judeus encontraram abrigo na casa de Aleida e Bertus Menneken, onde compartilhariam um pequeno sótão pelos dois anos seguintes. Estima-se que pelo menos 10 000 judeus se esconderam na Holanda e conseguiram viver à sombra — entre eles, a menina Anne Frank, que não exige apresentação.
Num pequeno espaço abaixo das vigas da casinha de tijolos, uma discreta janela iluminava as “sacadas” de Bloch, que se mantiveram bem-humoradas, apesar da situação. Escrevia — tanto em alemão quanto em holandês — textos e poemas jocosos, nos quais fazia críticas, muitas vezes em tom de deboche, aos principais líderes do Reich. Joseph Goebbels, propagandista de Hitler, era um alvo frequente. No poema O Caminho para a Verdade, o autor aconselha: “Se ele escreve reto, leia torto / Se ele escreve torto, leia reto / Sim, apenas vire suas palavras ao contrário / Em todas as suas palavras úteis, há dano”. Era um bom conselho.
Bloch e seus companheiros de quarto sobreviveram no sótão — ou na redação, por assim dizer — até a primavera de 1945, quando a Alemanha se rendeu, a caminho da libertação do jugo nazista. A última edição traz na capa duas pessoas emergindo de uma escotilha, com o título declarando que estavam finalmente “acima da água”, prontos para respirar. Naquela mesma publicação, ele escreve: “Herr Hitler, não canta hoje / Ele está sentindo, após algum atraso / Uma gravata ao redor do pescoço”.
Bloch emigrou para Nova York, onde — ao lado de sua companheira e sobrevivente de Auschwitz, Ruth Kan — criou dois filhos. As publicações remanescentes, evidentemente amareladas pelo tempo, foram guardadas em uma prateleira da casa. Só saiam de lá quando o antigo redator-chefe, um tanto tímido e desconfiado, resolvia ler algumas páginas para a família. Simone, filha de Bloch, hoje com 64 anos, lembra-se de ver os exemplares enquanto crescia, embora revele não ter compreendido a relevância do material empoeirado. “Pré-adolescente rebelde”, conforme sua própria descrição, nunca se conectou com o pai, que morreu quando ela tinha 15 anos. Muito tempo depois, porém, a filha de Simone, Lucy, se interessou pela papelada, não apenas como lembranças da vida privada em família, mas como marcadores de uma história maior, que não pode ser apagada, de modo algum. Ela conseguiu uma bolsa de pesquisa para viajar para a Alemanha, onde pôde estudar mais sobre a história do avô. Simone então passou anos procurando uma maneira de trazer a público as revistas, que representavam uma das poucas tentativas literárias a documentar o Holocausto na Europa.
Het Onderwater Cabaret é registro fundamental para compreender o cotidiano de milhares de pessoas que foram obrigadas a viver “submersas”, escondidas de um regime que criminalizava a sua existência. Naquela época, a escrita era não apenas uma forma de documentar a guerra, mas também uma ferramenta capaz de espiar as angústias e os anseios — ou um simples passatempo, um divertimento, uma réstia de luz na escuridão. Anne Frank e Curt Bloch, lembre-se, estavam separados por apenas 160 quilômetros. Ela escreveu histórias curtas, começou um romance, anotou várias passagens de livros e descreveu o que acontecia no Anexo Secreto durante os dois anos que passou escondida. As memórias da moça de olhar terno, assim como a verve de Bloch, são documentos de um tempo sombrio, doído, mas que precisa ser iluminado para que não se repita, nunca mais.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876