Apontado como “guru ideológico” do presidente da Rússia, Vladimir Putin, e muitas vezes comparado ao brasileiro Olavo de Carvalho, com quem já se encontrou, Aleksandr Dugin tem ligações conhecidas com o Brasil. Mas um novo relatório da ONG britânica Centre for Information Resilience, ao qual VEJA teve acesso com exclusividade, revela a extensão da influência russa no meio acadêmico brasileiro.
A pesquisa traça um mapa das conexões de Dugin no Brasil a partir de três fatores, sendo eles as visitas feitas pelo ideólogo, sua rede acadêmica no país e seus seguidores brasileiros, e tem como foco pessoas em cargos-chave, sejam pesquisadores, acadêmicos ou influenciadores que divulgaram ativamente o seu trabalho.
“As evidências disponíveis indicam que Dugin tem conexões significativas em pelo menos seis grandes universidades brasileiras, com grande apoio fornecido por três: a Universidade de São Paulo (USP), a Escola Superior da Guerra (ESG) e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)”, diz o documento. As outras três seriam a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
A partir de acadêmicos dentro das instituições, Dugin teve espaço para ser “palestrante principal para representar suas ideias em eventos, ou desenvolver publicações ao lado de acadêmicos brasileiros”, diz o relatório. “A rede de influência de Dugin no Brasil é privilegiada, prestigiada, bem posicionada e conectada tanto a alavancas influentes de poder quanto à opinião popular de uma forma que torna fundamental mapeá-la de forma abrangente e atrair a consciência pública”.
Segundo a pesquisa, as ideias do russo são beneficiadas por diferentes esferas de proteção, especialmente nas redes sociais, que têm “notórios pontos cegos quando se trata de moderar conteúdos extremistas e cujas capacidades em outras línguas além do inglês são escassas”.
O trabalho que impulsionou Dugin à proeminência foi os Fundamentos da Geopolítica, de 1997, no qual ele expôs sua visão de um império eurasiano, estendendo-se de Dublin a Vladivostok. Em uma passagem, escreveu: “É especialmente importante introduzir desordem geopolítica na atividade interna americana, incentivando todos os tipos de separatismo e conflitos étnicos, sociais e raciais, apoiando ativamente todos os movimentos dissidentes – grupos extremistas, racistas e sectários, desestabilizando, assim, os processos políticos internos nos Estados Unidos”.
Vindo de uma família de oficiais militares russos, Dugin foi de ideólogo marginal a líder de uma corrente proeminente de pensamento na Rússia, fundando a expressão “o mundo russo”. Essa vertente de pensamento incorporou uma profunda aversão à identidade da Ucrânia fora da Rússia.
Dugin também ajudou a reviver a expressão Nova Rússia – que incluía territórios de partes da Ucrânia – antes da anexação russa da Crimeia em 2014. Putin, inclusive, usou-a ao declarar a Crimeia parte da Rússia em março daquele ano. O filósofo também trabalhou o conceito do “espaço pós-soviético”, que foi absorvido pelo presidente russo.
“A extensão das redes do Kremlin no Brasil pode surpreender muitas pessoas, mas é algo de que elas cuidam há muito tempo. O Kremlin não funciona como um governo normal quando tenta influenciar países — eles fazem o ‘de costume’ através de diplomacia, laços econômicos e, por vezes, eventos culturais, mas a maior parte do que fazem passa despercebido”, diz Tom Southern, diretor de projetos especiais no Centre for Information Resilience.
Uma das táticas, que segundo Southern é o que acontece no Brasil, é construir redes humanas para atuarem como agentes proxy na academia, na política, na sociedade civil e na mídia — em parte, mas não exclusivamente, através dos esforços de Dugin.
“Eles tiveram muito sucesso no lado mais marginal da política, na extrema direita e na extrema esquerda, com simpatizantes. Você tem um movimento facilitado por um conhecido ideólogo do Kremlin que repete suas falas sobre tudo, desde a Ucrânia até direitos civis”, completa.
Visitas e presença no Brasil
O filósofo e cientista político já viajou duas vezes ao Brasil, em 2012 e 2014, quando participou de um seminário sobre as ideias do filósofo Julius Evola (1898-1974), considerado um dos teóricos do neofascismo italiano. Naquele mesmo ano, a Rússia invadiu a Crimeia, algo defendido Dugin: durante uma palestra na Rússia, disse que os ucranianos “deveriam ser mortos”. Pouco depois, foi demitido da Universidade Estatal de Moscou.
Durante as visitas, também participou da fundação de um núcleo de estudos no centro histórico de São Paulo em parceria com uma de suas seguidoras. Junto da filósofa Flávia Virgínia, ligada a pesquisas em institutos da USP, criou o Centro de Estudos da Multipolaridade (CEM), um think tank cuja ideia principal é a necessidade de polos alternativos de poder para além do Ocidente.
O centro, atualmente, está desativado. Virgínia tocou o projeto em eventos até, pelo menos, 2019, com a participação de alguns acadêmicos da Universidade de São Paulo, incluindo Angelo Segrillo, professor de História e especialista em Rússia que, segundo o relatório, se comunica com Dugin desde ao menos 2012.
Dugin também está ligado a vários acadêmicos da ESG, uma das principais universidades ligadas ao Ministério da Defesa e responsável pela formação de oficiais das Forças Armadas brasileiras. O ideólogo apareceu em eventos e pelo menos uma publicação patrocinada pela instituição.
No final de abril de 2022, com a guerra na Ucrânia já iniciada, foi anunciado um evento onde Dugin faria uma palestra ao lado de membros da ESG. O evento foi organizado oficialmente pelo Laboratório de Estudos de Defesa e Segurança Pública da Uerj, mas foi cancelado discretamente após pressão pública. Em comunicado, após o cancelamento, o Ministério da Defesa afirmou que o objetivo era expor os acadêmicos às “realidades nacionais e internacionais” e fornecer “perspectivas contrastantes” sobre o conflito. Em vez disso, Dugin fez uma palestra virtual ao vivo no canal Arte da Guerra, no YouTube.
Em abril de 2023, a ESG publicou uma revista representando várias perspectivas sobre a guerra na Ucrânia, contando com um artigo de Dugin, que argumentou que os países considerados do “segundo mundo” deveriam construir “Estados-civilização” e definir a soberania nos seus próprios termos, evitando categorias tradicionais como democracia ou ditadura. Segundo ele, palavras como democracia, ditadura, autoritarismo, totalitarismo, progresso social e direitos humanos não têm significado ou requerem uma tradução que as despoje de qualquer significado fundamental. Ele diz que mudar uma ordem mundial geralmente requer guerras, e, para que exista um mundo multipolar, mais guerras devem acontecer.
Outros autores da revista incluem Guilherme Mattos (ESG, Universidade de Defesa Nacional, Escola de Guerra Naval) e Leonam Guimarães (engenheiro naval e engenheiro nuclear, ESG). O editor-chefe foi o coronel Ricardo Alfredo de Assis Fayal, que seria um dos palestrantes no evento cancelado e é membro do Laboratório de Segurança Internacional e Defesa Nacional da ESG.
Para além dessas instituições, há outras que parecem estar envolvidas na promoção de Dugin ou de ideias compatíveis com as suas, com ligações óbvias com a estratégia geopolítica russa, de acordo com o Centre for Information Resilience. A mais significativa delas é a Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que sediou dois eventos no âmbito da série “Visão da Rússia para segurança internacional e multipolaridade: diálogos com acadêmicos brasileiros”. Ambos os eventos foram financiados pela Fundação Gorchakov para a Diplomacia Pública, uma instituição cujo nome aparece frequentemente ao lado do de Dugin noutras campanhas de influência estrangeira.