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EUA: Por que a esquerda pode exercer alguma influência nas eleições

A insistência de Trump em dividir o país entre conservadores e os outros abriu espaço para um grupo político que não tem força para crescer, mas faz barulho

Por Ernesto Neves Atualizado em 31 jul 2020, 12h00 - Publicado em 31 jul 2020, 06h00

Enredados desde o início do ano em uma espiral de contágio pelo novo coronavírus, que não dá trégua — o marco trágico de 150 000 mortes acaba de ser registrado —, os Estados Unidos vêm passando em paralelo por outra situação fora da normalidade: as ruas de grandes cidades pegando fogo, às vezes literalmente, em conflitos entre manifestantes antirracismo e forças de segurança. O movimento que começou com marchas no fim de maio, após o negro George Loyd ser asfixiado pelo joelho de um policial branco em seu pescoço, transmutou-se em choques constantes de grupos menores com a polícia em cidades pelo país inteiro. A mobilização tem raízes em uma série de insatisfações — com o governo, com o racismo, com o desemprego, com a pandemia que não vai embora. Mas por trás da persistência dos protestos está também a estridência, mais aguda do que nunca, de um segmento que raramente ganha papel de destaque na política do país: os chamados ultraliberais, o mais próximo de uma esquerda que os Estados Unidos foram capazes de produzir.

O estopim dos últimos conflitos foi o envio de tropas federais para acabar com um acampamento em uma praça de Portland, no pacato Estado do Oregon, na Costa Oeste, onde cerca de 150 manifestantes da linha ultraliberal montaram acampamento para protestar contra a violência policial. Durante o dia, gritavam e agitavam cartazes. À noite, atiçados pelos vândalos de sempre, deixavam um rastro de carros queimados, edifícios públicos pichados e embates com a polícia local. A governadora (democrata) não pediu, o prefeito (democrata) também não, mas foi para lá que o presidente Donald Trump, vestindo a capa de “defensor da lei e da ordem”, despachou a tropa de choque. Diante da truculência do reforço não solicitado, os liberais (como são chamados os americanos não conservadores) de Portland se indignaram e uniram forças aos ultra — até uma barreira autointitulada Muro das Mães passou a postar-se entre as tropas e os protestos. “Os ‘manifestantes’ são anarquistas que odeiam nosso país. A fileira de ‘mães’ inocentes é um engodo”, bradou Trump no Twitter, pondo mais lenha na fogueira. Depois de muito bate-boca, os federais aceitaram ir embora na quinta-feira 30.

Além de ir para a rua, essa nova esquerda americana se manifesta em prefeituras e na Câmara de Representantes, onde Alexandria Ocasio-Cortez, eleita por Nova York em 2018, é o rosto mais conhecido de um grupo de “radicais” que arrepia os caciques do Partido Democrata com suas propostas e tomadas de posição. AOC, como é conhecida, ganhou por 70% dos votos na primária em seu distrito e é candidata à reeleição certa em novembro. “Estamos provando que o movimento do povo em Nova York não é um acidente”, disparou. Ela deu aberto apoio, na pré-campanha democrata à Presidência, a Bernie Sanders, senador que se define como socialista e que, por um momento, entusiasmou tanto os jovens que chegou a ameaçar Joe Biden, o preferido da máquina partidária.

Pesquisa do Pew Research Institute realizada no ano passado mostrou que 15% dos democratas se definiam como ultraliberais, uma porcentagem minúscula, mas o triplo de vinte anos atrás. Trata-se de um grupo que defende reformas sociais amplas, como rede pública de saúde e ensino gratuito universal, taxação de grandes fortunas e defesa do meio ambiente. São sobretudo jovens moradores de grandes centros, com ensino superior. “Unidos aos liberais, eles podem atrapalhar Trump na eleição de novembro”, prevê Darrell West, cientista político do Brookings Institution, de Washington.

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O democrata Biden, à frente nas pesquisas, corteja os esquerdistas — sem se comprometer muito. Ele acaba de anunciar o plano de investir 2 trilhões de dólares em economia ecológica, prato cheio para o grupo, e ainda apontou Ocasio-Cortez, ela própria autora de um “New Deal Verde” para lá de radical (do qual Biden não aproveitou nenhum item), para um futuro cargo de conselheira sobre mudanças climáticas. A influência dos ultraliberais na plataforma democrata se restringe a questões periféricas, já que o eleitorado segue situado majoritariamente entre o centro e a direita: 37% dos americanos se dizem conservadores, 35% moderados e 24% liberais, de acordo com o Instituto Gallup. “A nova esquerda revitaliza o Partido Democrata, trazendo mais mulheres, negros e latinos, mas não fará a legenda aderir ao socialismo pregado por Bernie Sanders”, diz a socióloga Theda Skocpol, da Harvard. “Esse é, antes de tudo, um movimento de reação a Trump.”

Esquerdistas vieram à tona nos EUA (sempre com uma conotação antipática para o americano médio) em raras situações, como na perseguição aos comunistas movida pelo senador Joseph McCarthy nos anos 1950, que fez vítimas principalmente entre artistas e intelectuais, e no movimento contra a Guerra do Vietnã, vinte anos depois. A onda atual, mais forte e organizada, ganha algum corpo num ano decisivo: o da reeleição de Trump, que insuflou o antagonismo entre o público conservador e a elite liberal. A três meses de uma nova votação, e indo mal nas pesquisas, o presidente terá uma disputa difícil pela frente. Curiosamente, como o voto não é obrigatório, esse pedaço minúsculo da população pode ser decisivo.

Publicado em VEJA de 5 de agosto de 2020, edição nº 2698

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