Esquerdista com origem na guerrilha é favorito na eleição da Colômbia
A novidade tem menos a ver com ideologia e mais com a rejeição ao status quo
Com eleições marcadas para o fim do mês, a Colômbia se prepara para uma mudança sem precedentes, na qual um candidato de esquerda, que participou da luta armada, deve assumir a Presidência do país ainda sob impacto das cicatrizes deixadas por décadas de violência alimentada pela ação das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), e grupos guerrilheiros menores. Senador e ex-prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, 62 anos, integrou na juventude um deles, o Movimento 19 de Abril (M-19), e passou pela clandestinidade (seu codinome era Comandante Aureliano, personagem de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez), prisão e tortura até a facção se desmobilizar e virar partido político nos anos 1990. Sua expectativa de vitória agora se encaixa na onda de rejeição que varre a América Latina — a cada eleição, quem vai votar (e pouca gente vai) quer mesmo é remover quem está no poder.
Petro aparece com 38% das intenções de voto, ante 23% de seu principal adversário, Federico Gutiérrez, e tem tudo para, salvo surpresas, ganhar no segundo turno, em 19 de junho, e assumir a Presidência em 7 de agosto. Em sua campanha, bate nas teclas da justiça social, da sustentabilidade e do fim do autoritarismo, as mesmas brandidas pelo recém-eleito Gabriel Boric, no Chile, com quem frequentemente se compara. Sob o peso de mais de 220 000 mortos de 1964 a 2016, quando as Farc depuseram as armas, a Colômbia é governada há décadas, em inquebrantável rodízio, por um restrito grupo da elite local. A intenção do senador e seu partido, Colombia Humana, é romper o sistema. Nesse sentido, têm na mira as famílias mais ricas do país (nas suas contas, “4 000 a 5 000 pessoas”) — os alvos principais de uma reforma fiscal que pretende arrecadar 10 bilhões de dólares por ano elevando impostos sobre dividendos de empresas, ativos offshore e grandes propriedades rurais.
O foco nas desigualdades sociais angariou votos para a esquerda em um país onde a paralisação forçada pela pandemia corroeu ganhos econômicos e empurrou 40% da população para a pobreza, e onde um projeto de aumento de impostos provocou greves e protestos durante boa parte do ano passado, insuflando um grau de insatisfação levado às alturas pela selvageria policial na sua repressão. Une-se ao descontentamento popular a incapacidade do governo de combater o narcotráfico, uma praga que nunca deixou a Colômbia, ganhou força em uma longa associação com as Farc e agora faz explodir a criminalidade nos centros urbanos.
No início de maio, apesar da ostensiva presença militar, noventa municípios em nove dos 32 departamentos colombianos registraram bloqueios de estradas e incêndio de carros em represália pela extradição para os Estados Unidos de Dairo Antonio Úsuga, o Otoniel, líder do poderoso Clã do Golfo, que movimenta entre 30% e 60% da cocaína produzida no país. Do outro lado, grupos paramilitares surgidos de confrontos com a guerrilha e hoje ajudando na forma de milícias enxergam na eleição de Petro um risco à ordem estabelecida e fazem ameaças contra sua vida.
Mais do que a ideologia, porém, o que move a população a apoiar o oposicionista é o cansaço com a situação atual e o desejo de mudança — de preferência, para alguém de fora da elite política tradicional. “Os colombianos estão mais interessados em destronar o status quo do que em votar nos preceitos econômicos da esquerda”, afirma Manuella Libardi, analista da openDemocracy. Trata-se de um movimento de pêndulo, que nos anos recentes vem alternando mandatários na América Latina. Os ventos que, a partir de 2015, sopraram a favor de governos de direita na maior parte da região agora se desviam para o lado oposto: em sete eleições democráticas recentes, cinco foram vencidas pela esquerda (Argentina, com Alberto Fernández, Bolívia, com Luis Arce, Peru, com Pedro Castillo, Chile, com Gabriel Boric, e Honduras, com Xiomara Castro).
O favoritismo de Petro na Colômbia e a diferença, pelo menos no momento, entre Lula e Jair Bolsonaro no Brasil reforçam essa interpretação. “O fato de nenhum presidente ter conseguido se reeleger desde o início de 2020 fala muito sobre o clima do eleitor médio na América Latina. As pessoas querem novos rostos, que tragam novas esperanças”, analisa Patricio Navia, professor do Centro de Estudos Latino-Americanos e Caribenhos da Universidade de Nova York. Em uma região do planeta enfraquecida e distante das grandes decisões, a esquerda que se elege agora terá de fazer um grande esforço para a engrenagem girar novamente — sabendo que, se decepcionar, corre o risco de o pêndulo se mover para o outro lado.
Publicado em VEJA de 25 de maio de 2022, edição nº 2790