Encalhamento no Canal de Suez expõe gargalos da globalização excessiva
O cargueiro mastodôntico Ever Given foi liberto com sucesso, mas efeitos do represamento de matérias primas devem ser sentidos por meses, diz especialista
O navio de carga Ever Given, encalhado na transversal no Canal de Suez, no Egito, há seis dias, foi liberto com sucesso nesta segunda-feira, 29.
A embarcação de 220.000 toneladas e 400 metros de comprimento (quase a altura do Empire State Building) bloqueava o caminho de 12% do comércio marítimo internacional, fazendo do salvamento uma corrida contra o tempo.
Por seis dias e noites, equipes trabalharam em terra e água em uma das maiores e mais intensas operações de resgate da história. O exército incluiu operadores de máquinas, engenheiros, capitães de 11 rebocadores, dragas de sucção – uma delas capaz de extrair 2 milhões de litros de água por hora – e mergulhadores.
O resultado, contudo, só foi possível devido a forças mais poderosas do que qualquer máquina levada ao local: a lua e as marés. Com a lua cheia no domingo, as 24 horas seguintes ofereceram a melhor janela para trabalhar, com alguns centímetros extras de fluxo de maré ajudando na missão.
Mas, assim como a maré, o otimismo teve um pico e uma baixa ao longo desta segunda-feira. A retirada do bloqueio ao canal é apenas o início do fim do problema.
Reação em cadeia
Suez, rota marítima mais importante no comércio entre Ásia, Oriente Médio e Europa, por onde passam 80% das importações e exportações do continente, reteve cerca de 9,6 bilhões de dólares em mercadorias por dia, segundo análise da Bloomberg.
Além dos óbvios atrasos nas entregas de produtos que passam por lá, como carros, eletrônicos e até gado, de 5% a 10% de todo transporte de gás natural liquefeito, petróleo bruto e petróleo refinado é feito pelo canal, o que provocou impacto imediato no comércio mundial. O preço do petróleo subiu 6% na quarta-feira, após o naufrágio, efeito colateral que será sentido pelo mundo.
O consumidor também deve ser atingido pelo aumento do preço do transporte porque alguns conglomerados, como Cosco, MSC, Maersk, HMM e Evergreen decidiram mudar a rota dos navios para passar ao redor do Cabo da Boa Esperança, à moda da nau de Bartolomeu Dias. O desvio acrescenta 9.000 quilômetros na viagens (cerca de 10 dias a mais), além de 26.000 dólares extras por dia em custos de combustível.
“O bloqueio desencadeia uma série de interrupções e atrasos no transporte global que pode levar meses para se desfazer, mesmo depois que o canal for reaberto”, disse a Maersk em um comunicado no domingo.
Fora isso, o acidente também provocou uma escassez de navios no mundo inteiro. De acordo com os dados de rastreamento de embarcações da Lloyd’s List Intelligence, serviço especializado de informações comerciais dedicado à comunidade marítima global, 372 embarcações estavam paralisadas no Canal de Suez no domingo.
Agora, com a retomada do movimento dos navios de carga, é provável que cheguem aos portos movimentados de uma só vez, forçando muitos a esperar antes de poderem descarregar – um atraso adicional.
“O bloqueio do canal causou uma cascata que represou os insumos do transporte e matéria prima. No Brasil, vamos sentir os efeitos desse acidente pelo menos pelos próximos quatro meses”, diz Antônio Bonassa, professor de Logística na ESPM SP.
Globalização em xeque
O encalhamento do Ever Given expôs a dependência mundial das cadeias de abastecimento globais. Uma única embarcação – ainda que mastodôntica como poucas, e ainda que em um canal vital como Suez – gerou caos econômico de Rotterdam a Xangai a São Paulo, um alerta sobre os perigos da globalização excessiva.
Nas últimas décadas, especialistas em gestão e empresas de consultoria têm defendido a chamada fabricação just in time para minimizar custos e aumentar lucros. Em vez de desperdiçar dinheiro estocando mercadorias extras em depósitos, empresas podem depender da magia da internet e da indústria de navegação global para entregar o que precisam, na hora em que precisam.
Além disso, para otimizar a distribuição, a capacidade dos contêineres e porta-contêineres aumentou 1.500% na última metade do século 20 e quase dobrou apenas na última década, de acordo com a Allianz Global Corporate and Specialty, uma seguradora de transporte marítimo.
A revolução ampliou a disponibilidade de bens de consumo e baixou preços, mas os mesmos avanços geraram vulnerabilidades na indústria – já sob pressão desde o ano passado devido à pandemia do novo coronavírus. A dependência do just in time se fez evidente, por exemplo, no início do surto de Covid-19, quando hospitais da Itália aos Estados Unidos se viram sem equipamentos de proteção adequados, como máscaras e aventais.
“Interesses a curto prazo de lucro eclipsaram a administração prudente”, afirma Bonassa, explicando que empresas que economizam com o estoque de bens para gerar mais dinheiro aos acionistas na forma de dividendos geram gargalos que exacerbam-se em crises inesperadas – seja uma pandemia, seja um encalhamento.
Anos que pararam o mundo
Esta não é a primeira vez que o Canal de Suez ficou paralisado. Em junho de 1967, 15 navios que passavam pelo canal foram pegos no fogo cruzado da Guerra dos Seis Dias, entre Israel e o bloco formado por Egito, Síria, Jordânia e Iraque. Um dos navios afundou e os outros 14 encalharam e só foram retirados oito anos depois.
A guerra terminou em questão de dias, mas a passagem entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho ficou fechada até 1975, depois que mais um conflito entre entre árabes e israelenses após a fundação do Estado judeu (a Guerra do Yom Kippur) trouxe todos para a mesa de negociações novamente.
Os 14 navios que ficaram presos no canal não puderam sair durante todo esse tempo, fazendo com que as companhias de navegação mantivessem as tripulações no local para cuidar das instalações e das mercadorias, alternando os marinheiros de tempos em tempos. Os funcionários chegaram até a organizar uma “olimpíada” paralela às do México em 1968 para “manter a sanidade”, segundo a emissora BBC.
O Egito esperava que interromper o fluxo de petróleo e o comércio internacional forçaria europeus e americanos a reavaliar suas posições em relação ao Oriente Médio. Embora a medida não tenha funcionado, o bloqueio foi estendido porque ninguém queria ceder. Mas as consequências negativas para o país foram tantas que Anwar al Sadat, que sucedeu Gamal Abdel Nasser após sua morte em 1970, reabriu a via marítima em 5 de junho de 1975, no aniversário da Guerra dos Seis Dias.