Sabe-se como as guerras começam, mas não como terminam. O horror não tem limites — a sucessão de atos abomináveis põe em xeque os avanços da civilização e a moralidade da natureza humana. Passadas duas semanas do ataque de surpresa do Hamas contra cidades de Israel que resultou no massacre de 1 400 pessoas, quase todas civis, foguetes continuam a ser lançados a partir da Faixa de Gaza, que o grupo palestino controla, enquanto famílias israelenses enterram seus mortos. A retaliação de Israel, na forma de bombardeios diários, tirou mais de 3 000 vidas e forçou o deslocamento de ao menos 600 000 moradores. Neste ambiente de hostilidade e desespero, uma explosão seguida de incêndio no estacionamento do Hospital Batista Al-Ahli Arabi, o maior e mais antigo de Gaza, causou ao menos 500 mortes, muitas delas de mulheres e crianças que buscavam abrigo. As imagens do pátio coberto de vítimas ensanguentadas apagaram, ao menos temporariamente, qualquer centelha de esperança de trégua no pior confronto no Oriente Médio em décadas.
O Hamas culpou imediatamente Israel pela explosão no Al-Ahli. Os militares israelenses negaram que tivessem qualquer alvo na mira naquela área, naquela madrugada, e divulgaram vídeos e gravações que atribuem a tragédia a um foguete defeituoso lançado por outro grupo que atua em Gaza, a Jihad Islâmica Palestina. A inteligência americana informou que suas investigações preliminares confirmam a versão. Contudo, em reação automática, países do mundo árabe em peso condenaram Israel pela mortandade no hospital, somando-a a severas críticas contra a devastadora crise humanitária provocada pelo decreto de cerco total do enclave — há duas semanas que não entram água, comida, combustível e remédios na estreita faixa onde se espremem 2,3 milhões de palestinos.
A cratera aberta no estacionamento do hospital teve, além de pilhas de corpos sem vida, dois efeitos colaterais. Um deles foi inflar o apoio ao Hamas, grupo que não conta com simpatia nem entre os palestinos e que horrorizou o mundo pelas barbáries cometidas em Israel. Outro foi dificultar a ação do presidente americano Joe Biden, que desembarcou na manhã seguinte em Tel Aviv com a intenção de destravar a negociação de entrega de ajuda humanitária aos palestinos, no papel de moderador.
Aliado de primeira hora do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu na reação ao ataque do Hamas, que condenou em termos emocionados, Biden, em entrevista à TV, se disse contrário à ocupação de Gaza pelas forças israelenses (o que elas tampouco desejam) e favorável à criação de um Estado palestino. No Oriente Médio, tinha encontros marcados com os dois lados — em Amã, se reuniria com o rei Abdullah II, com o presidente do Egito, Abdul Al-Sisi, e com Mahmoud Abbas, líder da mais moderada Autoridade Palestina, que atua, com a bênção de Israel, na Cisjordânia ocupada. Os três desistiram, e restou se contentar com Netanyahu, a quem, mais uma vez, manifestou total apoio. Sobre o ataque ao hospital, disse: “Fiquei profundamente indignado. Com base no que vi, parece que foi feito pelo outro lado, não por vocês”. Ao longo do dia, manifestantes protestaram na frente das embaixadas dos Estados Unidos nos países árabes e em outros ao redor do mundo. Na Europa, prédios públicos fecharam as portas devido a ameaças de bomba.
Enquanto tentam costurar algum mínimo alívio de tensões entre Israel e Hamas, cientes de que seu poder de persuasão exige hoje em dia muito mais toma lá dá cá do que antigamente, os EUA despacharam dois porta-aviões, quatro destroieres e um cruzador para Israel com o propósito de dissuadir a entrada do Irã nos combates. “Uma guerra mais ampla no Oriente Médio é um dos maiores medos de Biden”, diz Robert Lieberman, especialista em relações internacionais da Universidade Johns Hopkins. “Desviaria recursos hoje destinados à Ucrânia, podendo ainda causar uma recessão mundial com a disparada dos preços do petróleo.”
Outro ponto delicadíssimo na trilha para algum entendimento são os mais de 200 reféns em poder do Hamas e aliados. Na segunda 16, o grupo divulgou as primeiras imagens deles — em uma delas, a franco-israelense Mia Schem, 21 anos, aparece com o braço enfaixado, pedindo em vídeo para voltar para casa. O terror acenou com a possibilidade de libertar os civis de todas as nacionalidades caso Israel interrompa o cerco e os bombardeios. Ninguém levou a sério — até porque, no momento, não há hipótese de um gesto israelense que possa parecer vitória do Hamas. “Nunca houve uma situação com reféns tão complexa na era moderna”, afirma Christopher O’Leary, ex-integrante do FBI americano. “Trata-se de uma zona de guerra ativa, com 500 quilômetros de túneis subterrâneos.” Biden saiu de Israel assegurando haver obtido tanto do país como do governo no Cairo garantias para a entrada de vinte caminhões de ajuda humanitária a Gaza via Rafah, restrito portão de passagem para o Egito — o único ponto nas três linhas de fronteira do enclave (a quarta é o Mediterrâneo) que não está sob controle oficial das forças israelenses. Antes, os Estados Unidos haviam vetado uma resolução do Conselho de Segurança da ONU costurada pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, e pelo presidente Lula (o Brasil preside o órgão neste momento) que condenava os ataques do Hamas e pedia a abertura de corredores de ajuda na Faixa de Gaza — mas, segundo os diplomatas americanos, pecava por não mencionar o direito de Israel à autodefesa.
A erupção do terrorismo vindo de Gaza se insere em um contexto de profundas mudanças no Oriente Médio. Nas últimas duas décadas, o eixo de poder do mundo árabe se deslocou do chamado Levante, arco de países em torno do Mar Mediterrâneo que compreende Egito, Síria, Líbano e Jordânia, para as ricas e cada vez mais autônomas e atuantes monarquias do Golfo Pérsico — nações pragmáticas altamente interessadas em laços comerciais com Israel, e que naturalmente apartariam os palestinos. Em 2020, os Acordos de Abraão, iniciativa promovida por Donald Trump, normalizaram as relações entre Israel e os Emirados Árabes Unidos, seguidos de Bahrein, Marrocos e Sudão. Nos últimos meses, Biden trabalhava na aproximação entre israelenses e a Arábia Saudita, em um movimento com capacidade de chacoalhar a rede de influências no Oriente Médio. As conversas, agora, estão suspensas por tempo indeterminado.
A disputa entre judeus e árabes remonta ao século XIX, quando teve início o movimento sionista pela criação de um estado judaico moderno. Colonos da Europa Central e Oriental, onde a perseguição era mais intensa, começaram a migrar para a Palestina, a terra prometida das Escrituras, então controlada pelo Império Otomano. As levas se intensificaram com a ascensão do nazismo e a II Guerra, culminando com a criação de Israel, em 1948. A divisão de terras inicial nunca foi cumprida, Exércitos árabes atacaram imediatamente e os moradores originais acabaram formando uma legião de refugiados que só faz crescer. “O conflito israelo-palestino não é sobre recursos ou questões econômicas”, diz o escritor e diplomata egípcio Ezzedine Fishere. “É uma briga por território.”
Na feroz disputa, entre guerras, ocupando territórios e sofrendo ataques terroristas, Israel instituiu no início dos anos 2000 duas áreas para acomodação dos palestinos: a Cisjordânia, que até hoje ocupa militarmente e onde a Autoridade Palestina (AP) tem uma bastante limitada autonomia para administrar as cidades, e a Faixa de Gaza, de onde os israelenses se retiraram em 2006, passando o controle também à AP. Um ano depois, o Hamas ganhou a eleição e o governo local, convocando seu exército de 30 000 milicianos para impor uma versão radical do islamismo e pregar a eliminação de Israel.
Dos confrontos mais mortais saíram as poucas tentativas de alcançar a paz na região, caso dos Acordos de Camp David, em 1978, em que Jimmy Carter patrocinou a aproximação entre o primeiro-ministro Menachem Begin e o presidente egípcio Anuar Sadat, e dos Acordos de Oslo, em 1993, em que Yasser Arafat e Yitzakh Rabin apertaram as mãos. Apesar das boas intenções, a questão palestina seguiu explosiva e a solução de dois países convivendo em harmonia foi ficando cada vez mais longe. Hoje, o ponto mais premente é o futuro da Faixa de Gaza. No mais otimista dos cenários para o fim das hostilidades, Israel empreende uma operação de alcance limitado, remove o Hamas de cena e abre espaço para a intermediação dos Estados Unidos de um acordo envolvendo as nações árabes e Mahmoud Abbas — um ponto fraco do projeto, visto que o líder da AP tem 87 anos, está doente e desprestigiado e é considerado carta fora da cúpula palestina.
O filósofo Yuval Noah, autor do best-seller Sapiens, deu sua contribuição em um artigo recente: “Uma coalizão de bem-intencionados, com Estados Unidos, União Europeia, Arábia Saudita e Autoridade Palestina, se responsabiliza por livrar Gaza do Hamas, reconstruir, desarmar e desmilitarizar o local”. Há quem vá mais longe e, em vez da até hoje fracassada criação de dois Estados, veja uma saída — longínqua, dificílima, trabalhosa — na absorção dos palestinos por Israel. “Existem ali dois povos que não vão a lugar nenhum e precisarão aprender a viver lado a lado ou juntos. Não há outra alternativa para a paz”, diz o cientista político Boaz Atzili, da American University, em Washington. São ideias tentadoras, mas só ideias. Por enquanto, a realidade é um chão forrado de mortos.
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864