Dá para sentir na pele, não importa o lugar. Nos últimos anos, a Terra tem experimentado períodos de extremos climáticos: ondas de calor e frio, secas, nevascas, chuvas torrenciais, degelo nas calotas polares e incêndios florestais. Os impactos na vida das pessoas, dos animais e no ambiente são evidentes. Exemplos não faltam. Em julho, em um efeito cascata, foram registradas queimadas no Canadá. Houve inundações na Índia, no Japão e na região leste dos Estados Unidos. Na Europa, as temperaturas escaldantes viraram marca do período de férias. Agora em agosto, foi a vez das labaredas tomarem a mata em Maui, no Havaí. Com ventos de até 100 quilômetros por hora, provocados pelo furacão Dora, os estragos se ampliaram, incontornáveis. O resultado: cinzas, drama e luto no centro histórico da charmosa cidade de Lahaina, com mais de 100 mortes, algo inédito e vergonhoso no século XXI.
Não há dúvida — a mão do ser humano acelera os estragos. O aumento das concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera aquece o planeta e bagunça os padrões de temperatura. Mas há uma dificuldade suplementar, que não pode ser desdenhada: a dificuldade de previsão meteorológica com a exatidão exigida. Ela brota em decorrência de um personagem muito falado e um tanto desconhecido, que começou a dar as caras em junho e ganhará corpo nos próximos meses: o El Niño. O fenômeno climático com nome de criança desponta em períodos que podem ir de dois a sete anos — ele apareceu da última vez há pouco mais de quatro anos. Sua característica mais conhecida: o aquecimento anormal do Oceano Pacífico, resultante do enfraquecimento de ventos que sopram do leste para oeste, e dá-lhe calor fora do padrão (veja o quadro).
O El Niño dá as caras, agora, no lugar de sua irmã, La Niña, que provoca efeito ao avesso, com resfriamento anormal das águas do Pacífico. E por que é preciso estar atento aos movimentos do evento radical, a ponto de ele fazer parte das rodas de conversa e das mensagens de WhatsApp? Porque ele é atalho para o calor, alimento para a multiplicação de descontrole do clima. “O El Niño ainda está em formação, mas já provocou um aumento de 0,72 grau, na porção equatorial do Pacífico”, diz Danielle Ferreira, do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). “Não dá para garantir, ainda, que vá ganhar força, a ponto de vencer a barreira dos 2 graus, quando passa a ser considerado forte.” Mas há atenção, nos próximos meses, e até um período de dois anos, porque o El Niño viria a dar as mãos ao grande vilão da natureza, o efeito estufa. Em julho, a temperatura média global subiu 1,5 grau acima da era pré-industrial, segundo o Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus da União Europeia.
Os brasileiros já sentem na pele, em 2023, o tempo mais seco e quente do que no inverno passado. Já em 2022, apesar da presença da friorenta La Niña, os termômetros foram lá para cima. Neste ano, com o El Niño, a tendência é ainda mais forte, e os graus a mais devem se estender para a primavera e o verão. E então, quando 2024 vier, espera-se que os recordes sejam batidos, um atrás do outro. Há, segundo os especialistas da Nasa, a agência espacial americana, 56% de probabilidade que seja um evento forte e 84%, moderado. Não é o fim do mundo, evidentemente não, e está longe de poder provocar pânico. Mas faz andar os humores da economia.
O mercado financeiro atrelado aos negócios do campo já se movimenta, atento à passagem do El Niño, por haver no horizonte real possibilidade de quebra da safra de grãos. A partir de levantamentos realizados em 100 países, ao medir o vaivém das temperaturas globais dos últimos anos, a Coface, seguradora de crédito e de serviços de informações comerciais, espera redução de colheita nas culturas de cereais, açúcar, óleo e frutas cítricas, no Brasil, mas também em outros países de produção volumosa, como a Indonésia e a Austrália. Com o El Niño, e a partir dele o calor intenso, chuvas torrenciais seguidas de estiagem abruptas, o plantio da safra de verão da soja, prestes a ser deflagrado, estaria comprometido. “Haverá aumento do preço das comodities”, diz Rosana Passos de Pádua, executiva-chefe da Coface Brasil. “A inflação na cesta básica é quase certa.” Aposta-se em cenário ruim porque a história recente autoriza o prognóstico. Entre 2015 e 2016, com a ação do El Niño, a falta de chuvas na região do Matopiba — que compreende o cerrado dos estados do Maranhão, Piauí, Bahia e Tocantins — trouxe prejuízo aos produtores rurais. Na Região Sul, a abundância de chuvas favoreceu a lavoura do milho, mas prejudicou a colheita de trigo e arroz.
As empresas de saúde privada também se anteciparam ao aquecimento deste ano, prevendo um cenário de crescimento de doenças infecciosas transmitidas por mosquitos. O Grupo Fleury, por exemplo, aumentou o estoque de vacinas em 20%. O calor e a chuva formam o ambiente ideal para reprodução de mosquitos transmissores de doenças como a dengue e a chicungunha. Isso acontece porque, além de se multiplicarem, eles picam mais vezes, para repor as energias despendidas no processo. “Aumenta, portanto, a probabilidade de os insetos encontrarem indivíduos suscetíveis ao vírus”, diz o infectologista Celso Granato, diretor clínico do Grupo Fleury.
Tanto a dengue como a chicungunha são transmitidas pelo Aedes aegypti, cuja disseminação geográfica se expandiu para locais antes considerados “virgens” dessas patologias, como França e Itália. Nesses países existiam casos de infecções em viajantes. Agora, há registros da doença em pessoas que não saíram do país. “Biologicamente o homem demora trinta anos para se adaptar a uma mudança climática, enquanto um vírus precisa de apenas vinte minutos”, diz Granato. Eis aí um bom conselho: a humanidade poderia ser mais rápida na compreensão dos reais danos do efeito estufa, o que inclui tratar o El Niño como adulto, e não como uma surpresa pueril. O conhecimento é que trará tranquilidade e saúde para o amanhã.
Nem tudo são espinhos
Há uma pergunta no ar, incômoda: a agricultura sobreviverá às mudanças climáticas? Ou, posto de outro modo: haverá comida suficiente nas próximas décadas, para uma população esperada de 2 bilhões a mais de pessoas — além dos 8 bilhões que já habitam o planeta? As respostas imediatas, dada a emergência, seriam não e não. Há, contudo, alguma surpreendente esperança. Um amplo e reputado trabalho elaborado por pesquisadores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), ao estudar o comportamento das plantações de soja, indicou que a gangorra desmedida, com muito sol e muita chuva, pode ser compensada pelo aumento da produção de CO2. Como? O aumento do gás provoca o fechamento dos estômatos da planta, que fica mais resiliente às alterações ambientais. Os estômatos são aberturas observadas na epiderme vegetal que garantem a realização de trocas gasosas entre o vegetal e a atmosfera. “Não estamos defendendo o aquecimento global, é claro, mas onde havia só problema pode despontar uma oportunidade”, disse a VEJA o agrônomo Fábio Marin, um dos líderes do trabalho publicado no European Journal of Agronomy.
O levantamento, feito na região de cerrado dos estados do Maranhão, Piauí, Bahia e Tocantins, indica expansão de produtividade de até 30%. Contudo, a projeção positiva não vale para todo o Brasil. As culturas foram divididas em dezesseis microclimas. Algumas regiões vão sofrer mais com a piora acentuada na distribuição das chuvas. “São pontos onde o volume de água de um mês pode cair em um dia, o que para a agricultura é péssimo”, explica Marin. O aquecimento climático traz riscos para os produtores do Triângulo Mineiro, sul de Goiás e Sudeste, onde as safras terão perdas. O pesquisador alerta: “Mesmo com regiões beneficiadas, as plantas demoram tanto para se adaptar às novas condições que isso implica altos investimentos para chegar aos patamares esperados”. De qualquer modo, saber que a natureza desenvolve “truques” é sempre bom.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2023, edição nº 2855