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E o ditador se mexe no túmulo

Desde que a exumação e a remoção do corpo de Francisco Franco foram aprovadas, os espanhóis estão diante de um impasse: para onde levar seus restos mortais?

Por Thais Navarro
Atualizado em 9 nov 2018, 07h00 - Publicado em 9 nov 2018, 07h00

Todo dia 20 de novembro, um punhado de pessoas se reúne na Basílica de Santa Cruz, no Vale dos Caídos, um mausoléu faraônico a 50 quilômetros de Madri, a capital da Espanha. O lugar abriga os restos do ditador Francisco Franco, que morreu nessa data, em 1975. É ali que seus admiradores passaram a se aglomerar ao lado de afrescos de passagens bíblicas e sob uma cruz de 150 metros. Cantavam hinos, faziam saudações fascistas e rezavam missa para o morto. Em 2007, uma lei proibiu manifestações políticas dentro do local, mas alguns seguidores continuaram rendendo homenagens ao ditador de maneira mais discreta nas proximidades. Em breve, essas celebrações ficarão ainda mais sutis. Em setembro, o Parlamento espanhol aprovou a exumação do corpo de Franco e sua retirada dali.

Com a solução de um problema, nasceu outro: para onde levar os restos do ditador? Os netos de Franco querem que eles sejam conduzidos para a Catedral de Almudena, uma das principais de Madri, onde a família tem uma cripta particular. O Partido Socialista do primeiro-ministro Pedro Sánchez se opõe. Quer que o falecido seja enterrado em um cemitério público comum, sem pompa alguma. “Se o corpo de Franco for para uma catedral em Madri, que é o centro político do país, isso só valorizará o franquismo. Será a transferência de um lugar sagrado para outro”, afirma o antropólogo espanhol Francisco Ferrándiz, que fez parte da comissão de especialistas que recomendou a exumação ao Parlamento. O impasse continua.

A decisão sobre o que fazer com monumentos e estátuas que remetem a um passado incômodo não é um dilema raro. “Geralmente, quem quer se desfazer desses símbolos está pensando os fatos do passado com uma mentalidade do presente”, diz o historiador espanhol Antonio Cañellas. “Se fosse assim, a humanidade teria de destruir uma infinidade de monumentos de outros tempos.” Muitos defendem a tese de que esses resquícios devem permanecer onde estão por motivos didáticos. “Retirar os monumentos pode significar que estamos tentando esconder ou apagar uma parte da nossa história”, afirma o espanhol Samuel Amago, professor na Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos.

PROFANO - Franquistas fazem homenagem e saudações diante do túmulo do ditador, na Basílica de Santa Cruz, em 2007 (Philippe Desmazes/AFP)

A tolerância em prol do conhecimento, contudo, pode ser abalada quando a peça em questão se torna objeto de culto e passa a promover a violência. Em 2017, os Estados Unidos foram tomados pelo debate sobre a retirada de uma estátua do general Robert Lee em Charlottesville, no Estado da Virgínia. Lee comandou os estados confederados do sul, que defendiam a manutenção da escravidão, na Guerra Civil americana (1861-1865). De um lado, supremacistas brancos organizaram uma manifestação contra a retirada da estátua. Do outro, grupos antifascistas se juntaram para contestá-los. Um jovem, então, avançou com seu carro contra manifestantes antirracistas e matou uma mulher de 32 anos. A estátua foi derrubada, assim como outras que estavam em diversas cidades.

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Uma opção intermediária é manter as obras mas inserir textos que despertem o interesse e propiciem discussões. O projeto apoiado pelo governo socialista da Espanha é transformar o Vale dos Caídos em um monumento à democracia, com informações sobre a história e sua construção. O mausoléu abriga um ossário com os restos de 33 000 vítimas da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Há tanto franquistas quanto republicanos, como são chamados os que lutavam contra Franco — um grupo eclético que reunia anarquistas, comunistas e democratas e que celebrizou o grito “No pasarán” (não passarão, em espanhol), dirigido aos fascistas. “É preciso apresentar todos os lados e dizer o que essas pessoas fizeram e representaram”, explica o sociólogo Lawrence Rosenthal, da Universidade da Califórnia, em Berkeley.

A lei espanhola que previa a remoção já completou onze anos, mas foi necessário que os socialistas chegassem ao poder para que ela fosse posta em prática. Durante o governo de Mariano Rajoy, do Partido Popular (PP), a lei foi simplesmente ignorada. “Embora nenhum partido político defenda a ideologia de Franco, o PP tem muitas ligações econômicas, políticas e familiares com esse regime”, diz o historiador espanhol Jose Colmeiro. “Por isso, ele repetidamente bloqueou os esforços de confrontar o legado franquista.” Sem o obstáculo do PP, a Espanha agora tenta pulverizar a lembrança de Franco.

Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2018, edição nº 2608

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