Assentada sobre uma das zonas sísmicas mais ativas do mundo, Lima, a capital do Peru, estremece por motivos de outra natureza: uma classe política destroçada por propinas distribuídas por uma empreiteira, o Executivo em guerra com o Legislativo, o Judiciário sob o risco de ser engolido pelo embate e as instituições democráticas na mira do fogo cruzado. Alguém já viu esse filme antes? No tremor mais recente do país em convulsão política, o presidente Martín Vizcarra — vice que assumiu quando o titular, Pedro Pablo Kuczynski, o PPK, renunciou — dissolveu na segunda-feira 30 o Congresso, dominado pela oposição, e convocou eleições legislativas para 26 de janeiro. Os parlamentares ensaiaram uma retaliação, afastando o presidente por “incapacidade moral” e dando posse à outra vice, Mercedes Aráoz. Ao perceber que contava com o apoio dos colegas e ninguém mais, Mercedes “renunciou”. O presidente “golpista” saiu do confronto revigorado, com suporte explícito das Forças Armadas e de parte da população, que foi às ruas apoiá-lo com faixas e cartazes.
O estopim para a turbulência, desta vez, foi a renovação de seis das sete cadeiras do Tribunal Constitucional, órgão supremo da Justiça. Nele está para ser discutida uma série de medidas de limpeza do cenário político propostas por Vizcarra, entre elas o fim do foro privilegiado. A solução encontrada pelos deputados para não perder mamatas foi chamar para si a responsabilidade de indicar juízes. O presidente não aceitou e radicalizou. “A crise política só será resolvida com eleições gerais. A votação parcial convocada pelo presidente pode trazer alguma estabilidade, mas não será a solução”, alerta o cientista político peruano Carlos Meléndez, da Universidade Diego Portales, no Chile. Enquanto o bicho pega no comando do país, os bons índices econômicos que faziam inveja aos vizinhos estão em queda. Antes calculado em 3%, o crescimento do PIB não deve superar os 2,5% neste ano, perspectiva que está afastando investidores estrangeiros.
Dois espinhos, em especial, emperram a engrenagem de governo e travam a economia. Um é a herança da corrupção sistemática implantada — lá também — pela brasileira Odebrecht e empreiteiras parceiras. Executivos delatores revelaram pagamentos de quase 30 milhões de dólares em propinas no Peru entre 2005 e 2014, em troca de contratos de 143 milhões, e detalharam o envolvimento de quatro ex-presidentes. Três estão presos — entre eles o respeitado economista PPK, eleito com uma plataforma anticorrupção e pró-liberalismo econômico. O quarto, Alan García, suicidou-se quando a polícia chegou com a ordem de prisão. O outro obstáculo à volta por cima é o fujimorismo, que tem maioria no Congresso sob a liderança de Keiko, filha de Alberto Fujimori, presidente-ditador de 81 anos que — adivinhem? — está preso por crimes contra a humanidade e corrupção. Keiko lidera os trabalhos parlamentares a distância — ela se encontra sob prisão preventiva há um ano por envolvimento na Lava-Jato peruana.
A instabilidade faz parte da paisagem peruana tanto quanto os requintados ceviches e a intragável Inka Cola. Nos primeiros anos da República, entre 1821 e 1845, houve 53 governos e seis constituintes. No século XX, cinco golpes abreviaram governos eleitos. A decisão de Vizcarra de dissolver o Parlamento (que, até a quinta 3, se recusava a acatá-la) e antecipar eleições tem frágil amparo legal. A Organização dos Estados Americanos (OEA) foi acionada pela oposição, mas, cautelosamente, ainda não se manifestou. Por mais que fechar parlamentos seja condenável, o presidente tem a população, cansada de corruptos, a seu lado. Seu índice de aprovação subiu de 45%, em maio, para 60%, em agosto, graças à percepção de que ele, político do interior sem grande projeção, é “limpo”. “Por enquanto, Vizcarra tem as regras do jogo na mão”, disse a VEJA um diplomata que acompanha a crise. Resta ver se terá força para domar o terremoto político em Lima.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2019, edição nº 2655