Covid-19 no México: tragédia anunciada
Indiferente ao recorde de mortes no país, o presidente esquerdista López Obrador segue sem usar máscara e recomendando amuletos como proteção contra o vírus
O escritor colombiano Gabriel García Márquez, que morou no México boa parte da vida, escreveu logo na primeira linha de Crônica de uma Morte Anunciada que o protagonista, Santiago Nasar, vai morrer. Toda a comunidade sabe de seu iminente assassinato, mas nada impede o trágico fim. De forma parecida, o destino do país que Gabo adotou parecia traçado no momento em que o primeiro caso do novo coronavírus foi registrado, em 27 de fevereiro de 2020: tudo apontava para uma propagação dramática. E ela aconteceu. Com a altíssima densidade demográfica (65,6 pessoas por quilômetro quadrado, o dobro da do Brasil) e quase metade da população vivendo na linha da pobreza, o país era terreno fértil para a pandemia — situação agravada pela teimosa resistência de seu presidente, Andrés Manuel López Obrador, em tomar providências para conter o contágio.
Enquanto o mundo se fechava e punha máscara, Amlo, como é chamado, continuou abraçando e beijando simpatizantes e recomendando aos mexicanos que seguissem vida normal (lembra alguém?). Resultado: nas últimas semanas, o México, que tem um décimo dos habitantes da Índia, superou o país asiático e passou para o terceiro lugar do mundo em número absoluto de mortos por Covid-19. Com hospitais lotados, escassez de suprimentos, sobretudo oxigênio, e vacinação morosa, a situação, neste começo de ano, atingiu seu pior momento. “O México atravessou a pandemia em voo cego e entra do mesmo jeito na campanha da vacinação”, critica Laurie Ximénex-Fyvie, chefe do laboratório de genética molecular da Universidade Nacional Autônoma.
No começo da pandemia, os mexicanos passaram três meses em isolamento social pouco rigoroso. Em junho, o governo suspendeu as restrições — foi via aeroportos mexicanos, aliás, que muitos brasileiros conseguiram chegar aos Estados Unidos. Como consequência, o contágio explodiu: o número de casos diários, de 4 000 em agosto, pulou para 20 000 em janeiro. Na Cidade do México, a ocupação dos hospitais está próxima de 90% — mesmo levando em conta que boa parte dos moradores não confia neles e prefere se tratar em casa. A falta de oxigênio atinge todos os setores, com longas filas de pessoas levando cilindros de casa para abastecer nos postos gratuitos. O narcotráfico intercepta caminhões, rouba a carga e a revende por até 300% acima do preço normal. Um caos.
López Obrador, 67 anos, assumiu o poder, em dezembro de 2018, derrotando os dois partidos estabelecidos, prometendo esmagar as elites e a corrupção e anunciando um projeto político independente, de esquerda, voltado para as necessidades domésticas. Deu tudo errado, claro. Mal começara a pôr seus planos em prática (no caso dos cartéis, sua proposta de trocar o confronto armado por saneamento das mazelas sociais, que insuflam o narcotráfico, acabou por fortalecer ainda mais os traficantes), a pandemia chegou e colocou o México de joelhos. A economia sofreu uma contração de estratosféricos 9% no ano passado — o Brasil reduziu 4% — e cerca de 60% da força de trabalho presta serviço autônomo, o que se traduz em multidões nos transportes públicos e aglomerações nas ruas, com vendedores ambulantes por toda parte. “Aqui, a pandemia de coronavírus foi precedida pela pandemia da pobreza”, lamenta Arnoldo Kraus, professor da Faculdade de Medicina na Universidade Autônoma.
Para piorar, o Ministério da Saúde admite que o total de 180 000 mortes que colocou o México no terceiro lugar mundial pode ser maior, já que, de janeiro a setembro, apenas 40% dos quase 200 000 óbitos a mais em relação ao mesmo período do ano anterior têm a Covid-19 como causa oficial. “Com este desgoverno, ninguém crê no vírus ou na vacina”, diz Esteban López, oncologista do Hospital Star Médica Morelia, na capital do estado de Michoacán — apenas 1% da população foi imunizada até agora. Infectado ele mesmo em janeiro, o presidente se recuperou e continua a aparecer sem máscara e a afirmar que seu governo “salvou milhares de vidas”. Quando confrontado com os números crescentes de vítimas, repete um bordão: “Tenho dados diferentes”. E segue em frente, confiando em amuletos para se proteger, como o que diz: “Pare, inimigo, pois o Coração de Jesus está comigo”. Pois bem: com resiliência de dar inveja a seus pares. Amlo atravessou 2020 com aprovação de mais de 50%. É um populista de fôlego. Mas uma hora o oxigênio de quem gosta de enganar a população acaba.
Publicado em VEJA de 3 de março de 2021, edição nº 2727