Copa do Catar terá novidades e muito luxo, mas está cercada de polêmicas
A festa do futebol chegou ao Oriente Médio. Alvo de críticas e denúncias, Mundial de 2022 será diferente, com peculiaridades que vão da data às distâncias
Causou espanto, em dezembro de 2010, quando o suíço Joseph Blatter, então presidente da Fifa, abriu um envelope com pompa e circunstância para anunciar o Catar como a sede da Copa de 2022. O pequeno emirado do Golfo Pérsico, com 2,8 milhões de habitantes e praticamente nenhuma tradição no futebol, desbancara as candidaturas de Estados Unidos, Austrália, Japão e Coreia do Sul para ganhar o direito de receber o primeiro Mundial em solo árabe. Por razões políticas, econômicas e humanitárias, as contestações foram imediatas e, na esteira dos escândalos de corrupção que derrubaram Blatter e sua turma, perdurou por anos a sensação de que, em algum momento, os planos acabariam frustrados e a Copa se mudaria do Oriente Médio para outro destino. Não foi assim. O sonho do hexa da seleção brasileira terá mesmo Doha e suas adjacências como palco, entre 21 de novembro e 18 de dezembro.
A data escolhida é uma das várias peculiaridades desta Copa. Para poupar os atletas e torcedores dos mais de 40 graus do verão, algo que nem mesmo os ultramodernos aparelhos de ar-condicionado instalados nos estádios seria capaz de minimizar, a Fifa concordou em, pela primeira vez em 22 edições, marcar o evento para o fim do ano, inverno no Catar. Haverá, portanto, um caos ainda maior no calendário do futebol, mas quem na Fifa se importa? A Copa gera fortunas para a entidade (foram cerca de 6 bilhões de dólares de lucro na Rússia, em 2018, e 4,8 bilhões de dólares no Brasil, em 2014) e não haveria de ser diferente na terra governada pelo emir Tamim bin Hamad Al Thani e impulsionada economicamente pela exploração de petróleo.
A Copa será um luxo só. Oficialmente, a organização diz ter gasto 6,5 bilhões de dólares na construção de oito estádios e centros de treinamento. Juntando todas as obras de infraestrutura, que incluem a implantação, do zero, de uma cidade para 200 000 habitantes — Lusail, onde antes havia apenas dunas e agora receberá uma final de Copa —, estima-se que o evento custará 200 bilhões de dólares. A nova linha de metrô com 37 estações levará todos os torcedores aos estádios. O modelo compacto da Copa propiciará um fato inédito: será possível assistir a mais de um jogo por dia das arquibancadas.
Até aí, tudo certo, não fosse um tenebroso contexto. O Catar sofre rejeição internacional devido ao histórico de infração dos direitos humanos, especialmente sobre as condições de trabalho de seus mais de 24 000 funcionários. A Anistia Internacional divulgou um relatório acusando a Fifa, seus patrocinadores e as construtoras responsáveis de exploração de imigrantes. Outro problema diz respeito ao fato de a homossexualidade ser um crime previsto por lei no país islâmico. Nasser Al-Khater, presidente do comitê organizador, garantiu que a comunidade LGBTQIA+ será bem-vinda, mas deve se adequar aos costumes locais. “Eles poderão fazer o que qualquer outro ser humano faria. As demonstrações de afeto são desaprovadas e isso se aplica a todos os torcedores”, disse à emissora CNN, sem especificar qual seria o limite para os gestos de amor. “O Catar e seus vizinhos são muito conservadores e pedimos aos visitantes que nos respeitem. Temos certeza de que o farão, assim como respeitamos as diferentes culturas.” Suas declarações eram uma resposta a Josh Cavallo, atleta australiano gay que revelou ter receio de ir ao Catar.
A Copa é importante mecanismo de sportwashing, termo que define o uso do esporte como forma de melhorar a imagem de um país. O mesmo ocorre com o Paris Saint-Germain, clube mediano da França e transformado em potência ao ser adquirido em 2011 pela Qatar Sports Investment, subsidiária do fundo de riqueza soberano do emirado. De certa forma, os gols de Neymar, Messi e Mbappé ajudam a limpar a barra do Catar com o Ocidente. Há quem ouse peitar os poderosos, como os grupos de ativistas com cartazes em eventos da Fifa. Outros são mais assertivos. A seleção da Dinamarca, já classificada para o torneio, anunciou um boicote comercial ao campeonato. A equipe não vai expor nenhum patrocínio e, no lugar, estampará mensagens humanitárias. Até a bola começar a rolar, provavelmente novas polêmicas surgirão. Será mesmo uma Copa diferente.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771