“Idêntica”. Essa é a palavra preferida dos consumidores de produtos falsificados. Depois dela, vem a justificativa padrão: “O original é caro demais”. Para a maioria dos frequentadores de centros de compras especializados em cópias e produtos contrabandeados, não há nada de errado em levar para casa um tênis último modelo ou um bolsa de grife “piratas”. As únicas vítimas seriam o governo, que recolhe impostos abusivos, e os “empresários gananciosos”, que cobram uma fortuna por alguns dos produtos cujas cópias lotam barracas de lonas nas apinhadas ruas de Ciudad del Este, no Paraguai, nos estandes de eletrônicos do shopping MBK, em Bangkok, na Tailândia, ou na tumultuada Rua 25 de Março, em São Paulo. Segundo a Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), o mercado de produtos ilegais movimenta mais de 13 bilhões de reais ao ano, conforme um estudo de 2015. Somente os cigarros contrabandeados do Paraguai seriam responsáveis por um fluxo de 4,2 bilhões de reais.
Para a analista política americana-venezuelana Vanessa Neumann, não há nada de inocente na compra de um produto falsificado, seja em São Paulo, Nova York, Paris ou Pequim. Especializada na análise de crimes transnacionais, Neumann dedicou anos ao estudo das interações entre crime, Estado e os impactos sobre a sociedade, democracia e liberdade. Quando trabalhou como consultora da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ela chegou à conclusão de que, ingenuamente, a maioria dos consumidores ao redor do planeta colaboram com o terrorismo e com o crime organizado. “As pessoas precisam saber disso. Mas o desafio é fazer com que elas entendam sem um tom alarmista” , disse Neumann a VEJA.
Em Blood Profits (Lucros de Sangue), livro lançado recentemente nos Estados Unidos e ainda sem tradução para o português, Neumann conta sua experiência investigando as redes criminosas globais e como elas se alimentam do comércio aparentemente ingênuo das falsificações. “Encontrei no Oriente Médio mulheres riquíssimas que, mesmo assim, compram uma carteira falsa e ainda comemoram a pechincha. As pessoas precisam mudar de comportamento e isso terá de ser uma atitude de pressão social, como agora está ocorrendo com a questão do assédio sexual”, disse Neumann.
O livro mostra ainda como o narcotráfico está por trás do financiamento dos atentados recentes do grupo Estado Islâmico na Europa. “Não se trata de ser moralista, mas muitas pessoas que elogiaram o livro e se disseram chocadas com o que está ali seguem comprando drogas”. Para Neumann o desafio é fazer as mesmas pessoas que se revoltam com um atentado como aquele perpetrado contra a redação do jornal Charlie Hebdo, em Paris, ou em Manchester, na Inglaterra, pararem de comprar cigarro de maconha ou cocaína. “Elas precisam saber que essas células do Estado Islâmico se bancaram pelo tráfico de drogas”, diz.
O mesmo raciocínio se aplica ao caso colombiano, onde mais de 260.000 pessoas foram mortas em meio século de guerrilha. Para manter ativo cada guerrilheiro, as Farc necessitavam entre 6.000 dólares e 12.000 dólares anuais. “Esse dinheiro vinha, em grande parte, do tráfico. Sem os consumidores, essa receita que sustentou uma guerra não teria existido dessa forma”, diz.
Nascida na Venezuela, a autora faz uma análise de como o narcotráfico penetrou na estrutura política de seu país e como o dinheiro sujo da atividade contaminou a política. “Mais de 30 milhões de pessoas estão sob um regime cuja relação com o narcotráfico é notória, mas, mesmo assim, o mundo fecha os olhos para essa que é uma das causas da crise venezuelana. A Venezuela é o exemplo de como o crime organizado pode destruir um país“.
Em Blood Profits, Vanessa não apresenta uma solução para a questão. Segundo a autora, ela não se propõe a isso. “O objetivo é começar a mostrar às pessoas que elas estão ingenuamente patrocinando o terrorismo e máfias muito perigosas em nome de uma boa pechincha”, diz.
Em entrevista a Veja, a autora do livro explica como comprar produtos piratas fortalece as organizações criminosas:
Em seu livro, a senhora distribui a responsabilidade para temas importantes da segurança global para os cidadãos comuns. Qual é o fundamento para isso?
Porque por mais que as pessoas façam isso de forma inconsciente ou até mesmo ingenuamente, elas estão sim colaborando com as organizações criminosas. Explico melhor para não parecer moralista ou alarmista. Ninguém pode pensar que quando vai a uma loja de produtos falsificados, está deixando o seu dinheiro nas mãos de empresas que atuam dentro da lei. Por natureza, já estamos falando de pessoas que estão cometendo uma série de crimes, como a violação de direitos autorais e a sonegação de impostas. Quando alguém compra produtos pirateados está bancando máfias e organizações terroristas.
De que modo?
Não é de hoje que se sabe que o Hezbollah se alimenta do narcotráfico. Também se sabe que grupos terroristas como o Estado Islâmico ganham dinheiro com esse negócio ilícito. Os provedores de drogas para essas organizações são os mesmos que abastecem o mercado do cidadão comum. Portanto, quando alguém adquire uma porção de maconha ou cocaína, está financiado essas mesmas organizações.
De que forma o contrabando entra nesse esquema?
Da mesma maneira. Os crimes são correlatos. São os mesmos agentes e organizações que se comunicam e interagem. Quando fui ao Líbano, perdi a inocência em relação a isso. Vi como a Venezuela sustenta aquelas organizações terroristas e como essas organizações do Oriente Médio têm influência no meu país, em especial o Irã. O crime organizado transnacional destruiu a Venezuela.
Isso ocorre apenas com terroristas do oriente médio e bandidos da América Latina?
Não. Russos, chineses, africanos. Todos os lugares têm o seu tipo de organização. No Norte da África, traficantes de cigarros patrocinaram atentados terroristas. Hoje, o drama dos refugiados está de certa forma associado ao tráfico e contrabando que patrocinam a violência. Até mesmo o tráfico de escravos modernos está conectado a isso. Ter a todo custo a cópia do produto de uma grife usada por famosos patrocina essas atrocidades. O mesmo vale para o consumo de drogas.
Como isso se dá nos países desenvolvidos?
Em escala diferente, mas com efeitos semelhantes. Nos Estados Unidos e na Europa, os produtos piratas são consumidos, geralmente, pelos mais pobre, mas mesmo ricos por vezes adquirirem essas falsificações. Outro ponto a se lembrar: a América é o principal consumidor mundial de cocaína. Os usuários americanos são aqueles que mais financiam grupos que lutam contra a segurança e a estabilidade dos próprios americanos. É difícil fazer as pessoas entenderem isso.
O que a senhora acha que pode ser feito para mudar esse círculo?
É difícil. Precisará ser algo gradual e cultural. Quando uma socialite começar a ser ridicularizada por estar usando algo falsificado, isso será um bom sinal. Essas pessoas precisam passar às vezes por esse tipo de exposição para parar de cometer os mesmos erros. Não tem explicação uma mulher rica comprar uma bolsa falsificada só para dizer que possui aquela bolsa, mas que prefere pagar uma fração do preço, pois o original é caro demais. Se é caro, o correto é não comprar. Sei que essa mudança de comportamento é algo que leva tempo. Mas é possível. Gosto de comparar isso com os casos de assédio sexual: era algo que as pessoas toleravam até muito recentemente, mas que hoje é totalmente inadmissível.