Nos primeiros dias de 2020, um drone americano descarregou mísseis no céu do Oriente Médio e o eco ressoou em ondas de apreensão pelo mundo todo. Em uma ação ousada e inesperada, os Estados Unidos executaram o general Qasem Soleimani, comandante da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã e cérebro de atentados terroristas, subornos e alianças de bastidores que consolidaram a influência iraniana na região. O presidente Donald Trump, de quem partiu a ordem para o ataque, rotulou a ação não como um ato de guerra, mas como uma medida de prevenção. “Ele era um monstro”, declarou no Salão Oval. “Estava preparando uma grande e cruel operação contra nós.” Os mercados financeiros sofreram solavancos, o preço do petróleo subiu e líderes em toda parte clamaram por bom-senso. Na quinta-feira 9, a temida escalada para uma guerra aberta entre os dois países em uma das regiões mais voláteis do planeta continuava a pairar no ar, mas tanto americanos quanto iranianos moviam com cautela as peças do explosivo tabuleiro das ações e reações.
Sem dúvida, foi a semana mais tensa no Oriente Médio em décadas. A alta capacidade de combustão na geopolítica mundial tem a ver com o alvo escolhido e a maneira como a operação foi executada. Qasem Soleimani era o segundo homem na linha hierárquica do Irã, atrás apenas do aiatolá Ali Khamenei. Seu cortejo fúnebre, na segunda-feira 6, arrastou 1 milhão de pessoas às ruas de Teerã. Em sua cidade natal, Kerman, o aperto e a correria da multidão eram tão intensos que resultaram em 56 mortos e 210 feridos. Além disso, ele foi assassinado em uma ação institucional do governo americano, realizada como uma emboscada. Diante do tamanho da afronta, o Irã precisava dar algum tipo de resposta. Horas mais tarde, à 1h02 da madrugada no horário local — o exato horário em que os mísseis americanos explodiram os dois carros que deixavam o aeroporto de Bagdá tendo a bordo Soleimani —, o governo iraniano lançou quinze foguetes contra duas bases americanas no Iraque, um “tapa na cara” dos Estados Unidos (mais simbólico do que agressivo), na descrição de Khamenei. Nenhum americano foi atingido. Outra bateria de mísseis foi lançada na quarta-feira 8 nos arredores da embaixada em Bagdá, igualmente sem vítimas. “São respostas calculadas para agradar ao público interno”, diz Michael Barak, do Instituto Internacional de Contraterrorismo de Tel-Aviv. “Visam a preservar o orgulho nacional, sem piorar a situação.”
Boa parte do planeta torce para que esses atos sejam, de fato, um teatro e não evoluam para um conflito aberto que, dadas as características dos antagonismos envolvidos, poderia levar até mesmo a uma guerra global. No pior cenário, a Rússia ou a China, ou ambas, poderiam eventualmente tomar o partido iraniano, e o planeta amargar uma contenda de proporções inimagináveis. Ainda que o confronto não fosse tão mercurial, uma sequência de atos terroristas, seguidos de respostas dos americanos, criaria um clima de instabilidade mundial, com consequências nefastas para a economia e a diplomacia internacionais — o Brasil, evidentemente, não seria exceção. Ou seja: trata-se de um jogo em que todos perderiam. Aparentemente, ambos os lados se conscientizaram do risco e resolveram baixar a temperatura. O ministro das Relações Exteriores do Irã, Mohammad Javad Zarif, tuitou: “Não queremos guerra, mas nos defenderemos contra qualquer agressão”. Trump reforçou a tática dos panos quentes ao avaliar, cercado de militares, que os iranianos pareciam estar “baixando o tom”.
Diante do violento potencial da situação, é de perguntar o que levou o presidente americano a ser tão impetuoso neste momento. Ao criar um mártir, o governo dos Estados Unidos pode ter dado aos aiatolás um respiro na insatisfação popular diante da crise econômica: em 2019, o PIB despencou 10% e a inflação bateu em 35,7%; manifestações populares contra o regime em novembro causaram a morte de 600 pessoas e a prisão de 10 000. Lançar mísseis no Iraque também pode fazer pender para o lado inimigo uma conjuntura que era favorável aos Estados Unidos. Um dos trabalhos bem-sucedidos de Soleimani, incansável no espraiamento da rede de influência iraniana (veja o quadro), foi justamente aproveitar o vácuo político deixado pela derrocada de Saddam Hussein, em 2006, para fincar a garra iraniana no centro de poder local. Nos últimos meses, a população do Iraque deu várias manifestações de que andava farta dos iranianos mandando no país. Depois da execução do general, o Parlamento aprovou um pedido para que as tropas americanas deixem o Iraque. “Trump baseou a decisão de matar o general iraniano em três fatores”, diz Elizabeth Shakman Hurd, especialista em Oriente Médio da Universidade Northwestern, em Illinois. “Quer desviar as atenções do processo de impeachment que corre no Congresso; ganhar pontos junto à sua base evangélica pró-Israel; e, como vem fazendo desde o início, antagonizar-se com o Irã.”
A hostilidade entre Irã e Estados Unidos já dura décadas, desde que o aiatolá Khomeini tirou do trono o xá Reza Pahlevi, aliado de fé dos Estados Unidos (leia a reportagem). Por um breve momento, no governo Barack Obama, o ar pareceu clarear quando um acordo internacional determinou limites para o andamento do programa nuclear do Irã e parte das sanções econômicas contra o país foi suspensa. Trump fez campanha desancando o acordo, que considerava generoso demais. Uma vez eleito, retirou dele os EUA e reimpôs as penalidades. O Irã, que em represália já vinha descumprindo alguns limites, diante da morte de Soleimani anunciou que vai acelerar os trabalhos em suas usinas nucleares. O caminho a ser trilhado a partir de agora exige que Trump, o imprevisível, e Khamenei, o radical, tenham sensatez para não destravar o ultrassensível gatilho da violência no Oriente Médio. O pavio está aceso, o barril de pólvora se aproxima, mas há como apagá-lo.
Publicado em VEJA de 15 de janeiro de 2020, edição nº 2669