Mandachuva inconteste em seu país, Mohammed bin Salman, o MBS, príncipe herdeiro da Arábia Saudita, resolveu à sua moda um escândalo inconveniente. Na segunda-feira 23, a Justiça saudita anunciou que cinco pessoas haviam sido condenadas à morte pelo assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, uma das vozes mais críticas ao regime no exterior. Outras três receberam sentenças de prisão no total de 24 anos. Nenhuma delas foi identificada, mas é certo que são todas agentes de baixo escalão. Com isso, MBS quis pôr uma pedra nas suspeitas de que a morte de Khashoggi foi ordenada pela alta cúpula do governo, com o aval dele mesmo. “É a antítese da justiça, uma piada”, protestou Agnes Callamard, que investiga o crime para a ONU.
O julgamento em Riad foi a portas fechadas, sob rigoroso sigilo. Dos onze réus pelo assassinato, cometido no consulado saudita em Istambul, três foram absolvidos por falta de provas — justamente os mais próximos a Bin Salman. Khashoggi, que vivia nos Estados Unidos e escrevia para o jornal The Washington Post, foi visto pela última vez entrando no consulado no dia 2 de outubro de 2018, para buscar documentos necessários a seu casamento com a turca Hatice Cengiz. De acordo com o veredicto, a decisão de matá-lo partiu de agentes encarregados de interrogá-lo e foi tomada “no calor do momento”. Gravações obtidas por investigadores, contudo, mostram que os agentes que o executaram tinham desembarcado em Istambul pouco antes. Entre eles havia um sósia do jornalista, que sairia do prédio como se fosse ele, e um médico-legista, que portava uma serra para esquartejar o corpo. Os restos mortais nunca foram encontrados.
Em busca de maior aceitação internacional, MBS comanda um projeto de reformas internas e incentivo ao turismo que inclui a inédita emissão de vistos a cidadãos de 49 países e o fim da proibição de dirigir às mulheres. A morte de Khashoggi e os muitos indícios da participação do príncipe estão atrapalhando as iniciativas modernizadoras em toda parte — menos junto à Casa Branca, onde Donald Trump jamais negou apoio ao “amigo” que reverte milhões de petrodólares em compra de armamentos americanos. MBS chegou a declarar em uma entrevista que se considerava responsável em última instância pelo crime, por ter ocorrido sob sua autoridade. Não convenceu ninguém na época. Dificilmente convencerá com as condenações de agora.
Publicado em VEJA de 1º de janeiro de 2020, edição nº 2667