Um branco pinta o rosto, põe peruca afro e finge ser negro. A fantasia, aparentemente inofensiva, tornou-se flagrante manifestação de racismo em várias partes do mundo, e por sólidas razões históricas: a transformação física muitas vezes foi — e ainda é, eventualmente — acompanhada de linguajar e gestos caricatos com o expresso propósito de ridicularizar quem nasceu com a pele negra. O problema é que, sobretudo na América do Norte, pouca gente acima dos 40 anos não apareceu em público, pelo menos uma vez na vida, ostentando a execrada blackface — e a internet está aí para devassar arquivos e expor o pecador. Justin Trudeau, 47 anos, o muito charmoso primeiro-ministro do Canadá, em plena campanha para tentar permanecer no posto, foi pego nas últimas semanas em duas black e uma brown faces do passado, com efeitos deletérios nas pesquisas. Seu partido, o Liberal, amarga 34%, atrás do Partido Conservador, com 37%.
A primeira cara pintada de Trudeau está em uma foto de 2001, quando ele foi a uma festa com o rosto escurecido com tinta marrom e um turbante na cabeça — imitando personagem do conto de Aladdin, esclareceu sua assessoria. Depois viriam duas blackfaces da adolescência — Trudeau cantando em um show de talentos e fazendo caras e bocas em um filminho curto. O primeiro-ministro foi rápido e incisivo nas desculpas. “Não devia ter agido assim. Tinha obrigação de saber que não era apropriado. Lamento profundamente”, penitenciou-se. Mas o estrago estava feito.
A aversão ao blackface tem as raízes mais profundas nos Estados Unidos, onde, por quase dois séculos, comediantes pintaram o rosto e fizeram carreira ridicularizando os negros. A fantasia virou insulto e, vira e mexe, algum político é pego em flagrante. A repulsa se repete no vizinho Canadá, que acolhe imigrantes de toda parte. “O rosto pintado é visto como a preservação do racismo”, diz Andrew Heard, cientista político da universidade canadense Simon Fraser.
O escândalo blackface não foi o único a embaralhar as chances de Trudeau na eleição do dia 21. Antes dele, o primeiro-ministro foi trucidado por uma das mais brilhantes estrelas de seu ministério, Jody Wilson-Raybould, da Justiça, por ter pedido que ela pegasse leve na condenação da maior construtora do país por propinas e desvio de dinheiro. Trudeau justificou o gesto como uma tentativa de preservar empregos e negócios importantes para o Canadá, mas a interferência foi condenada por um conselho de ética. “A integridade de seu discurso e a profundidade de seus valores estão em questão nesta eleição”, diz François Rocher, professor da Escola de Estudos Políticos da Universidade de Ottawa. Com tanto revés, não há charme que resista.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2019, edição nº 2655