Durante uma das maiores tragédias naturais dos Estados Unidos neste ano, os incêndios na Califórnia em novembro, um grupo de voluntários brasileiros legais e indocumentados atuou intensamente na região de Los Angeles nos 13 dias de combate às chamas, de socorro a vítimas e de busca aos desaparecidos.
Pelo menos 105 nacionais residentes naquela área mobilizaram-se sob a coordenação de Renato Akerman, um músico e dublê de cinema dedicado também ao trabalho contra a intolerância, que trocou o Brasil pelos Estados Unidos há nove anos.
Naqueles cenários infernais, a Equipe de Resposta a Emergências da Comunidade – Brasil (Cert Brasil) fez parte da estrutura comandada pelo Corpo de Bombeiros e a Agência Federal de Gestão de Emergências (Fema). Sua atuação se deu em um palco de guerra, no qual 88 pessoas morreram em uma área dizimada de 615 quilômetros quadrados – incluindo toda a cidade de Paradise. As operações terminaram em 22 de novembro com um saldo de 12.600 imóveis destruídos e de 870 desaparecidos.
“Historicamente, os fogos de 2018 foram os piores da Califórnia. Foram 85 mortes confirmadas no norte do estado e mais três em Los Angeles. De muitos desaparecidos talvez a gente não recupere nem mesmo os corpos. O prejuízo chegou a 13 bilhões de dólares este ano, e a cidade de Paradise, no norte, foi a mais afetada”, resumiu ele a VEJA.
Nos incêndios da Califórnia, as atenções da CERT Brasil se dividiram entre os chamados de emergência (call-outs) para o trabalho braçal, as unidades de hidratação e alimentação dos que estão na linha de frente de combate ao fogo e as patrulhas de prevenção e de monitoramento de incêndios.
“Fizemos muitas patrulhas de fogo, passando o que acontecia para a chefia, por rádio. E ajudamos também nos abrigos”, relatou.
A Califórnia já havia enfrentado, em janeiro, um incêndio de largas proporções. Quase todo ano é assim: o ar seco e quente desencadeia, com ou sem outros gatilhos, labaredas aterradoras. A região ainda é vulnerável a terremotos e, na costa do Pacífico, a tempestades e furacões.
Segundo Akerman, nesse panorama, os governos federal e estadual exigem cada vez mais independência da população para se salvar e sobreviver. Se antes pediam para que os cidadãos se virassem por 24 horas, agora, com os serviços públicos sobrecarregados, exigem preparo para 72 horas.
“Com os grandes desastres que têm acontecido nos últimos anos, esse tempo tem aumentado. E o que significa isso? Que nós, cidadãos comuns, temos de estar preparados”, afirmou. “Os Estados Unidos não só tem uma cultura diferente, mas também enfrenta situações de emergência como terrorismo e desastres naturais – terremotos, tsunamis, furacões – pouco familiares para quem nasceu e viveu no Brasil.”
Ao se ver diante dessa situação, há dois anos, Renato pensou na criação do Cert-Brasil também como uma forma de fortalecer a comunidade brasileira na Califórnia. Tomando como exemplos os mexicanos e os sul-coreanos, ele constatou que os imigrantes se sentem mais próximos uns dos outros quando se preparam juntos para algo. Isso mostrou-se verdade especialmente no caso dos brasileiros, que falam um idioma pouco usual naquela região.
“Outras comunidades de imigrantes mais unidas aqui da Califórnia já tinham iniciativas desse tipo, como a coreana e a mexicana. Então, se você precisasse de assistência em coreano ou espanhol, você encontraria. Agora, em português, não tinha. Melhoramos, portanto, o acesso desses imigrantes à ajuda em situações de emergência”, explicou.
O Cert-Brasil se tornou, portanto, um meio de unir a comunidade local brasileira, até então muito pouco habituada a enfrentar desastres naturais e atos de terrorismo.
A ideia dos Cert nasceu nos Estados Unidos em 1985 por iniciativa do Corpo de Bombeiros de Los Angeles e inspirado na atuação de voluntários japoneses depois de um terremoto. O programa ganhou adeptos em diversas partes do mundo, inclusive no Rio de Janeiro.
Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, a Fema reestruturou a ação dos Cert, que passaram também a se preparar para tratar das consequências de atos violentos e ameaças terroristas. Em especial para auxiliar outras pessoas em desespero. Todos os programas do Cert nos Estados Unidos acabaram subordinados ao Departamento de Segurança Interna (DHS), e todos os seus voluntários passaram a ser checados.
“Quando há uma emergência, como um ataque terrorista, nós temos acesso a muitas coisas que um cidadão comum, sem treinamento, não tem. Podemos entrar em salas de comando, unidades móveis de comunicação e, por isso, o DHS tem de nos investigar. Um suposto voluntário não checado pode pegar as informações e usar para um futuro ataque. Ele pode até aperfeiçoar sua ação criminosa.”
Essa vigilância diz respeito somente aos antecedentes criminais. Segundo Akerman, a situação migratória dos inscritos não é uma questão a ser examinada. Os imigrantes indocumentados podem participar do CERT sem nenhuma preocupação.
“No nível básico, a pessoa só precisa dar um nome para constar do seu certificado e um e-mail, para a comunicação. Isso faz com que a população se sinta confortável, ao perceber que não existe nenhuma dificuldade em participar”, afirma. “Em uma situação de emergência, a última coisa que vai interessar é se a pessoa está ou não em situação legal no país. Oque importa é ajudar o próximo.”
Somente em um degrau acima, para o voluntário se envolver nos chamados call-outs, há um processo de investigação criminal mais detalhado, com o registro de fotografia, checagem de digitais e verificação dos antecedentes. “Mesmo se o candidato for imigrante ilegal, não há problema nenhum. Ele poderá participar do Cert.”
No caso do Cert-Brasil, Akerman conseguiu reunir em dois anos 700 inscritos, dos quais 105 são participantes ativos. Todos passaram por um ciclo básico de sete aulas, com carga horária total de 17h30, e estão certificados para atuar em situações de desastre.
“Nosso treinamento é baseado no dos bombeiros. Além disso, a gente tem as mídias sociais em português do CERT Brasil, reuniões comunitárias, seminários, workshops. O trabalho é bem mais abrangente do que apagar incêndios”, declarou.
Vocação
O paulistano Akerman carrega uma herança familiar na área do voluntariado. Seus avós foram dois dos fundadores da atual Unibes (União Brasileiro-Israelita de Bem Estar Social) e seu pai, ex-diretor do Hospital Albert Einstein, sempre apoiou instituições beneficentes. A mãe, também médica, seguia na mesma seara.
Em sua primeira experiência morando sozinho nos Estados Unidos, em 1986, estudou inglês na Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla) e fez cursos de música, sua paixão antiga. No Brasil, mantinha um estúdio. E, inspirado no Museu da Tolerância, de Los Angeles, foi um dos fundadores do Instituto Tolerância Brasil, uma iniciativa voltada ao combate aos preconceitos.
Seu contato com o Museu da Tolerância foi fundamental para sua mudança definitiva para os Estados Unidos. Em uma fase emocionalmente difícil de sua vida, depois do rompimento de uma relação de 20 anos, ele se distanciou da música e preferiu dedicar 80% do seu tempo às iniciativas de segurança e de combate a violência. Em paralelo, continua a trabalhar como dublê em sets de filmagem.
Foi nessa época que encontrou-se em Los Angeles com o rabino que comanda a entidade americana. Familiarizado com a história de Akerman, o religioso o convidou para trabalhar como professor em uma instituição paralela ao museu. Naquele ano de 2009, ele trocou seu visto de turista por um de trabalho e aceitou a oferta. Desde então, Akerman só visitou o Brasil uma vez, há dois meses, e logo voltou ao trabalho.